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Horácio Cometti: o guerrilheiro que virou comentarista

Ex-militante de um partido revolucionário em seu país, argentino veio ao Brasil e acabou entrando no mundo da bola

Horácio ComettiHorácio Cometti - Foto: Paullo Allmeida

Vez ou outra, é possível que um torcedor, ao acompanhar transmissões esportivas pela Rádio CBN, estranhe aquela voz em sotaque castelhano. Ela tem como dono o argentino Hector Horacio Cometti, de 63 anos. Possivelmente, também, desconhecem estes mesmos ouvintes uma vida de luta, protagonizada pelo comentarista, aficionado do Boca Juniors, simpático ao Santa Cruz, e vendedor de pastéis na praia de Boa Viagem. Ele, inclusive, que viu o seu caminho traçado tanto por escolhas próprias, quanto pela imposição do destino. Apesar disso, se diz um argentino de outro planeta, do tipo que não sente saudade da terra natal - algo bastante incomum, segundo o próprio, entre os conterrâneos, que um dia o decepcionaram, e o fizeram criar raízes no Recife.

“Sou nascido e criado em La Boca.” Fácil perceber certo ar de privilégio exalado por Horácio Cometti ao ouvi-lo pronunciar tal afirmação. Aos desavisados, explicamos: o bairro citado pelo comentarista é o mesmo onde está situado o mítico estádio La Bombonera - o mesmo, de propriedade do Boca Juniors. A paixão pelo clube foi herdada do pai, Hector, que o associou, inclusive, no momento de seu nascimento. Futebol nunca foi um mero lazer. “Meu pai era um grande admirador de futebol. E na minha infância, era um programa obrigatório aos domingos. Íamos todos. Amigos, irmãos, primos... Futebol na Argentina é uma cultura, e não apenas a paixão por um clube. Ele envolve tudo”, contou.

Diante de tamanho cenário, intrínseco à sua vida, desde a infância, durante os anos 1950 e 1960, se arriscar no esporte não chegou a ser uma opção. No Boca Juniors, escolheu a zaga, aos 10 anos, para fazer testes. Foi até aprovado, onde atuou no infantil do clube por um ano. Como qualidades, exaltou o fato de ser “um canhoto, bom de bola e que tinha bom passe”. Nada disso, no entanto, pareceu superar sua condição ocular, à época. “Os técnicos da época gostaram de mim, me deram chance. O problema era que quando eu tirava os óculos, para cabecear, por exemplo, não tinha o tempo de bola. Meu pai, então, disse que não adiantava forçar. Quando eu tirava os óculos, até para ler era ruim.”

Apesar de não poder atuar, admirou apenas zagueiros até os anos 1980. O último, Daniel Passarela. “Minha idolatria nunca foi de Maradona, mas sim do Passarela. Atuávamos até no mesmo lugar, em campo. A quarta zaga, como vocês falam aqui (no Brasil)”, disse, pouco antes de fazer questão de deixar claro: “Depois de velho, há 12 anos, fiz uma cirurgia de correção. Mas agora não dá pra jogar mais (risos). Agora só serve para ler bula de remédio”.

Período militar 

A “aposentadoria” dos gramados não o impediu de trabalhar desde jovem. Entre os 13 e 14 anos, tirou sua primeira carteira de trabalho. Havia essa possibilidade na Argentina, para menores de idade. Não largou os estudos. Os pais não concordariam. “Eles me incentivaram para que eu fizesse uma escola técnica para ter um ofício”, contou o comentarista, que se graduou técnico mecânico. “Nunca atuei na área. Minha vocação não era essa. Anos depois descobri que gostava de direito ou jornalismo.” Poderia ter feito faculdades para ambos os cursos. Sua militância política não permitiu, no entanto.

“Eu comecei a militar durante o período que estudava na escola noturna. Para você ter uma ideia, nasci em 1954. No ano seguinte, a ditadura começou na Argentina. Ou seja, me criei em um ambiente social sempre alterado por golpes militares, que ‘tutelavam’ governos constitucionais. Tive tias que se envolveram na resistência peronista (Em referência ao presidente Juan Domingo Peron). Inclusive na luta armada. Às vezes, para muita gente, é difícil de compreender o que nos motiva. Mas este era o meu ambiente”, justificou Horacio Cometti, que viveu uma vida clandestina na Argentina dos 15 até os 26 anos de idade.

Seu início na militância aconteceu no Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT), que havia sido formado em uma província do interior. A formação era Guevarista, ao contrário de outros partidos de esquerda que beberam da fonte Marxista-Leninista. “Os lideres haviam tido muito contato com Che Guevara, nas viagens dele a Cuba, no inicio dos anos 1960. E captaram muito bem a mensagem de Che Guevara, que pensava em um novo homem, em uma nova sociedade... Que a América Latina deveria estar junta para o futuro”, contou.

Horácio Cometti

Foto: Horácio Cometti
Créditos: Paullo Allmeida

Da juventude Guevarista, parte de seu partido, Horacio Cometti logo se viu envolvido na luta armada, organizada também pelo PRT. Seu trabalho era praticamente de inteligência. Mas também participou de treinamento armado, durante seis meses. Tinha, à época, entre 18 e 20 anos - não lembra ao certo. O espaço para tal treinamento era escasso, mas garantiu ter sido muito bem feito. “Você tinha de assimilar tudo muito rápido. Eu fui a campo, mas essencialmente eu fiz muito trabalho de inteligência. Eu fiz, por exemplo, um trabalho de reconhecimento do terreno inimigo”, contou, pouco antes de garantir que era algo normal para a época. “Agora, você corre um risco, lógico. Naquela época a gente não media as consequências.”

Confronto armado, de fato, com sua participação, aconteceu apenas em duas oportunidades. Uma vez em 1973 e outra, em 1975. “Lembro que era à noite. Se meus tiros bateram em alguém, e se houve morte, sinceramente, eu não sei”, contou, garantindo estar apoiado na adrenalina para não ser tomado por um natural temor por sua vida. “Você está muito compenetrado de que aquilo é uma coisa que você esta fazendo certa. Algo trabalhado inconscientemente por você mesmo. No outro dia, óbvio, a gente balança. Para e pensa”, falou.

A organização armada da qual participou foi desmontada em 1976. O líder do grupo, chamado Exército Revolucionário do Povo (ERP), havia “caído”. O mesmo, inclusive, aconteceu a outras lideranças. “O exército argentino já estava trabalhando muito contra a gente. Nosso grupo era muito perigoso, tanto militarmente, quanto politicamente, para o sistema”. A morte também bateu a sua porta, em outras duas oportunidades. Apenas o endereço estava errado. “Não cheguei a ser preso. Duas vezes me foram buscar. Eu acho que alguém falou, na tortura, mas não deu o endereço certo. Eu, então, tive uma chance de fugir. Caso tivessem me encontrado, eu já seria um homem morto. A maioria dos companheiros estavam mortos”. Nenhum, no entanto, amigo. “Nós não éramos amigos. Aquele tipo de organização não permite você fazer amizades.”

Brasil 

Um fato marcou de vez a vida de Horácio Cometti e o fez pensar em deixar a Argentina. Algo, inclusive, que gerou certa mágoa do comentarista com o povo de seu país. Três dias antes de os militares invadirem as Ilhas Malvinas, em 1982, uma grande mobilização foi protagonizada pelas ruas de Buenos Aires. A pressão era previsível, por um Estado falido diante da população. Jovem, Horácio também foi às ruas, por conta própria. No dia 2 de abril, no entanto, após a invasão e o discurso de que “aquelas terras haviam voltado a ser argentinas”, um rancor tomou conta de si. O mesmo povo que vaiou o governo militar, agora aplaudia. Pela televisão, ele assistiu. E uma promessa foi feita à mãe. “Um dia saio deste país”.

Surgiu, então, uma oportunidade de ir para o Rio de Janeiro. Uma prima, que já morava no Brasil havia certo tempo, fez o convite. Ela era Irma Alvarez, artista muito ligada ao cinema novo, e que até fez participação no filme “Terra em Transe” de Glauber Rocha. “Ela aparece com um grupo de mulheres. Uma parte que aparece umas mulheres muito bonitas, como se fossem deusas”, contou. Ela, também, foi a responsável por direcionar a atenção do primo ao Recife. “Em 1984 eu vim passear aqui. Conhecer à cidade. E gostei. Um ano depois já voltei para morar”, relembrou.

Para sobreviver, começou a vender pasteis. Algo que faz, inclusive, até hoje, na praia de Boa Viagem. “Na Argentina existe uma tradição de fazer essas coisas. Qualquer família sabe cozinhar. Minha mãe sempre me ensinava às receitas da família, porque você nunca sabe o dia que vai precisar”, afirmou. São, atualmente, 31 anos com esta atividade. Ela foi responsável também por abrir as portas para a vocação que Horácio dizia sentir a certo tempo. “Conheci Léo Medrado (radialista) no mesmo período. Fizemos uma amizade na praia. Gostávamos de falar de futebol. Sempre que chegava, ele queria falar comigo de futebol. Então o convite foi feito. E hoje sou comentarista esportivo.” Se um dia vai parar? “Só se me tirarem (risos). Caso não concordem com meu posicionamento às vezes radical. Mas aqui (Rádio CBN) tenho muita liberdade. Ou quando não puder mais trabalhar”, finalizou.

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