"Achava que só chegaria a Brasília", diz brasileira que conseguiu prêmio inédito em Harvard
Sarah Borges é uma das vencedoras do Sophia Freund Prize 2025, concedido apenas a estudantes que alcançam o mais alto desempenho acadêmico da turma
“Dizem que o refeitório de Harvard parece o cenário de Harry Potter — não sei se é verdade, porque eu nunca vi o filme. Uma vez estava comendo no local com uma americana e uma menina de Cingapura. Uma delas fazia uma aula de Arqueologia e falava sobre como os cientistas usam as cáries para identificar o que os homens pré-históricos comiam. A outra começou a explicar o nascimento da escrita, que tinha aprendido no curso de Literatura. E eu comecei a pensar em como o nosso cérebro foi evoluindo ao longo do tempo. Esse foi só um dos encontros, entre tantos que tive ali, que me fazia pensar sempre: ‘Eu pertenço a este lugar, aqui é normal ter esse tipo de diálogo enquanto se come’. Eram conversas que nunca imaginaria ter em um refeitório. Em Goiânia (GO), qualquer pessoa ia pensar: ‘Meu Deus, ela é muito nerd!’.
Eu nasci e cresci em Goiânia com meus pais, um engenheiro civil aposentado e uma dona de loja de móveis. Na infância, eles conseguiram um desconto enorme em uma ótima escola para que eu e minha irmã gêmea, a Sophia, estudássemos num lugar com uma visão mais holística do aluno. Fiz aulas de arte, xadrez, natação, participei de feiras de ciências e tudo o que podia. Ali eu aprendi a gostar de aprender.
No ensino médio, fui para outro colégio, mais voltado ao vestibular, porque não havia muitas opções diferentes, também com bolsa de estudo. Naquele momento, pensava que o mais longe que eu poderia chegar seria a Universidade de Brasília (UnB), a duas horas de casa. Mas, neste ano, fui a primeira brasileira a ganhar o Sophia Freund Prize de Harvard, prêmio reservado a quem tira a nota final mais alta da turma e conclui o curso summa cum laude (expressão em latim que pode ser traduzida como ‘com a maior honra’).
Na escola, gostava de Ciências, Sociologia e Filosofia. E gostava, acima de tudo, de aprender. Decidi, então, que queria uma carreira que juntasse essas disciplinas, e que eu continuaria aprendendo e pesquisando. Só que me vi frustrada quando fui escolher o que cursar. Vi que o ensino superior no Brasil é muito rígido, e minha irmã mais velha me sugeriu ir para fora, onde se pode estudar um monte de coisas até escolher o curso.
Não sabia como funcionava nada, só que era caro. Pesquisei e descobri que era possível conseguir ajudas. Mas fiz o vestibular de Medicina e passei para a Universidade de São Paulo (USP) junto com a Sophia. Minha ideia era focar na pesquisa. Acabei aceita em Harvard e desisti da USP.
Não sabia o que esperar quando fui para os Estados Unidos. Estava insegura com o meu inglês e me preocupava ter que usar outro idioma, que não português, o tempo todo. Com o tempo, fui me acostumando e fazendo amigos. No primeiro ano, um outro brasileiro organizou uma festa surpresa para mim com um bolinho e fizemos uma bagunça no refeitório de Harvard. Foi a primeira vez que comemorei longe da minha família.
Durante o curso, cursei disciplinas como Computação, Estatística, Evolução, Budismo e Ética. Fiz amigos americanos e também das Filipinas, do Líbano, do Quênia. Aprendi com meus colegas imigrantes o que significa se tornar um cidadão global que consegue se compadecer e entender a complexidade de uma situação que se passa num lugar bem diferente de onde você cresceu.
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Fiz um amigo, o José Valdez Genao, que foi o primeiro a sair da escola pública na República Dominicana para Harvard. Desde o início ele criou um programa para inspirar jovens dominicanos a também chegarem em universidades nos EUA. Compartilhamos dúvidas: deveríamos seguir por uma formação que nos desse mais retorno financeiro, para ajudar nossa família, ou seguíamos por algo mais do nosso interesse? Foi bom ver que mesmo uma pessoa que cresceu em um outro país, do qual eu sabia quase nada antes de entrar em Harvard, tinha dúvidas muito parecidas com as minhas em relação ao futuro.
No final, acho que nós dois entendemos que a vida é feita de capítulos e que, acima de tudo, nossos pais querem nos ver felizes. Assim, seguimos nossos sonhos. Ele decidiu fazer Ciências Políticas e atualmente trabalha na Embaixada dominicana em Nova York. Eu fiz Psicologia e pesquisei no meu trabalho final como jovens que têm mais crenças negativas sobre pessoas que têm transtornos mentais tendem a querer buscar menos serviço de saúde e de fato não buscam.
Agora, fui aceita para fazer o doutorado na Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Pretendo usar grandes bancos de dados nacionais para avaliar se serviços de saúde mental para jovens no Brasil são eficazes e as melhores formas de diagnosticar transtornos de humor, especialmente depressão. Além disso, estou dando mentoria para jovens que queiram estudar no Brasil ou nas principais universidades do mundo junto com a minha irmã gêmea. O dinheiro que arrecadamos vai para a Sophia continuar a pesquisa dela em Harvard, onde ela está fazendo um doutorado ao mesmo tempo que termina a graduação de Medicina na USP. Como ela não tem bolsa, também criamos uma vaquinha para conseguir financiar a estadia dela por pelo menos mais um semestre.
Tudo o que tenho vivido não foi possível apenas por mérito individual. Contei com muitos apoios: dos meus pais, que buscaram uma escola melhor do que poderiam pagar; dos meus professores, que me incentivaram; das fundações de apoio, como a Brasa, que oferece mentoria gratuita para a aplicação; da Garcia Family Foundation, que me ajudava com custos extras; e da Estudar, de onde sou bolsista desde 2023 e tem toda uma rede de apoio para brasileiros no exterior. E outra coisa é que eu tive muita sorte de ter essa inclinação para gostar de estudar. A vida nos entrega esses presentes, né? Reconheço isso. E já que recebi, quero usar para presentear outras pessoas com o que posso produzir nas minhas pesquisas”.
*Em depoimento a Bruno Alfano

