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NOBEL DE MEDICINA

Brasileiro recebeu terapia gênica experimental baseada em descoberta que ganhou Nobel de 2025

Adolescente tratado nos EUA e acompanhado por médicos em São Paulo melhorou de síndrome rara que provocava múltiplos problemas autoimunes

M.F.S., de 17 anos, teve seu primeiro corte de cabelo rente após se recuperar da alopecia causada por síndrome autoimuneM.F.S., de 17 anos, teve seu primeiro corte de cabelo rente após se recuperar da alopecia causada por síndrome autoimune - Foto: Leonardo Oliveira Mendonça/Acervo Pessoal

As descobertas dos cientistas que receberam o Prêmio Nobel de Medicina de 2025 já impactaram diretamente a saúde de um brasileiro. O adolescente M.F.S. (iniciais fictícias), de 17 anos, teve melhora após participar do ensaio clínico para uma terapia contra uma síndrome rara.

O paciente é portador da IPEX, uma doença de origem genética que provoca vários problemas autoimunes, causados quando o sistema imune ataca células do próprio organismo. Um ano e meio atrás, ele passou por uma seção de terapia gênica que altera o DNA de sua medula óssea.

O procedimento foi realizado nos EUA, por médicos da Universidade Stanford, após uma equipe do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC) ter negociado a entrada de M.F.S. como voluntário num ensaio clínico que os americanos estavam realizando.

O paciente foi apresentado aos médicos 14 anos atrás. Na época, ele exibia eczemas persistentes na pele, com uma alergia muito intensa, e tinha sido diagnosticado apenas com dermatite atópica. Passados alguns anos, ele começou a ter outros sintomas, incluindo uma artrite juvenil que foi tratada com imunobiológicos, mas não melhorou. Pelo contrário, começou a ter vários outros problemas, incluindo alopecia (perda de cabelo), vitiligo (despigmentação), uma herpes persistente no olho e uma diarreia que chegou a provocar desnutrição.

"Num primeiro momento, esses problemas ficaram sendo entendidos como se fosse complicações dos medicamentos para tratamento da artrite, mas na verdade, a gente hoje sabe que já era uma manifestação da IPEX", conta o médico imunologista Leonardo Oliveira Mendonça, pesquisador do HC e do Centro Nacional de Erros Inatos da Imunidade e Imunodesregulação (CNE3I).

A série de problemas autoimunes que M.F.S. tinha foram finalmente diagnosticados como IPEX, que é um problema inato: uma mutação defeituosa no gene FOXP3. Em pessoas saudáveis, esse gene expressa uma proteína que impede o sistema imune periférico de atacar órgãos do próprio paciente. Isso é feito no corpo por meio de células conhecidas como linfócitos T reguladores, que deixam de funcionar adequadamente em pacientes com IPEX.

Na prática, é como se o paciente com a mutação genética, uma alteração no cromossomo X, contraísse diversas doenças autoimunes diferentes ao mesmo tempo, com um impacto muito grande de saúde. A sigla IPEX é o acrônimo em inglês para "Síndrome de Inmunodeficiência, Poliendocrinopatia e Enteropatia Ligada ao X".

Ensaio clínico oportuno
Mendonça acompanha M.F.S. desde os três anos de idade, e conta que ele era um caso desafiador, porque não achou doador compatível para fazer um transplante de medula. O procedimento invasivo é o único tratamento que existe para a doença hoje, além de medicamentos para administrar sintomas.

Quando o médico viu a oportunidade de incluir o paciente no ensaio clínico em Stanford, exames foram feitos e um ano e meio atrás, e já qualificado ele foi encaminhado à Califórnia para fazer o tratamento.

O procedimento envolveu primeiro a retirada de células de M.F.S. para que fossem alteradas fora de seu corpo. Um vírus modificado foi usado para alterar o DNA desse material extraído, que depois foi devolvido ao seu corpo como um implante na medula óssea, o órgão humano que produz as células sanguíneas e imunes.

Alguns meses após o procedimento, M.F.S. voltou ao Brasil e é acompanhado agora pelos imunologistas do HC, parceiros do grupo de Stanford.

"Todos os sintomas dele foram aliviando gradativamente até que hoje, quase um ano e meio depois, está praticamente tudo normal", conta Mendonça. "Ele melhorou 100% das doenças alérgicas, incluindo rinite, asma e a dermatite atópica que ele tinha. Ele não teve nunca mais anemia hemolítica e nem artrite, e não precisou usar remédio para isso. E ele também não teve mais diarreia, também, que era uma coisa que tirava bastante a qualidade de vida".

Um elemento que foi essencial para a autoestima do paciente, diz o médico, foi a melhora na alopecia. Como ele perdia muito cabelo perto da nuca, antes ele costumava manter o cabelo de cima comprido para esconder as falhas na parte de baixo. Depois da melhora, M.F.S fez questão de começar a usar um corte de cabelo bem rente, algo que antes o incomodava.

O ensaio clínico do qual o paciente participou, que era de fase 1 (avaliação de segurança) já passou para a fase 2 (avaliação de eficácia) e cientistas do HC estão se articulando para que mais voluntários brasileiros possam entrar no projeto. A ideia é que dentro de algum tempo o tratamento experimental possa ser feito em instalações do próprio HC em São Paulo.

O imunologista Jorge Kalil, professor da USP, explica que as descobertas relacionadas ao prêmio Nobel de Medicina de 2025 influenciou também o estudo de imunoterapia contra o câncer e técnicas contram rejeição de órgãos transplantados. É no caso das doenças autoimunes, porém, que o trabalho dos premiados Mary Brunkow, Fred Ramsdell e Shimon Sakaguchi demonstrou impacto mais direto na vida dos pacientes.

"A compreensão dos linfócitos reguladores e do FOXP3 é muito importante, e os estudos desses três cientistas foram fundamentais para isso", diz o pesquisador, membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC). "O Prêmio Nobel para eles é muito justificado, e no Congresso Mundial de Imunologia em Viena, em agosto, vários pesquisadores já estavam se perguntando quando é que eles iriam recebê-lo."

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