Cozinhar vivo é cruel? Estudo brasileiro mostra sensibilidade de lagostas e camarões
Declaração da Alianima reúne evidências científicas de que crustáceos podem sentir dor, reacendendo debate sobre práticas de manejo e consumo
Em 2003, o escritor norte-americano David Foster Wallace visitou o Maine Lobster Festival, nos Estados Unidos, para uma reportagem da revista Gourmet. O evento, que mobiliza pescadores e chefs para preparar toneladas de lagosta, revelou a Wallace uma questão ética antiga e pouco debatida: o cozimento de animais vivos para consumo. O ensaio resultante, publicado em 2004 com o título Considere a lagosta, explorava se ferver seres sencientes por prazer gastronômico poderia ser considerado moralmente aceitável.
Vinte anos depois, o debate ganha novo fôlego com a Declaração de Senciência em Crustáceos, lançada agora em dezembro pela organização brasileira Alianima e assinada por 35 especialistas nacionais e internacionais. O documento compila décadas de estudos neuroanatômicos, comportamentais e farmacológicos que indicam que camarões, lagostas e outros crustáceos são capazes de sentir dor, experimentar sofrimento e exibir respostas complexas a estímulos nocivos.
De acordo com a Revista Super, a produção global de crustáceos é impressionante: cerca de 440 bilhões de camarões são cultivados anualmente, número que, somado à pesca extrativa, pode chegar a trilhões de animais mortos por ano. Apesar disso, políticas de bem-estar animal raramente incluem esses invertebrados, em parte devido à distância evolutiva em relação aos humanos e à ausência de sinais óbvios de sofrimento, como vocalizações ou expressões faciais.
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Pesquisas recentes, no entanto, apontam para sistemas sensoriais sofisticados nesses animais, capazes de detectar calor, choques elétricos e outras formas de estímulo prejudicial. Comportamentos como esfregar uma área lesionada ou mudanças no comportamento sob anestesia sugerem sensibilidade à dor. Estudos também indicam capacidades cognitivas complexas, incluindo aprendizado, memória, tomada de decisão, cuidado parental e até diferenças de personalidade.
Para especialistas como Caroline Maia, da Alianima, essas evidências são contundentes. “Esses animais aprendem a evitar situações dolorosas, ajustam seus comportamentos e podem sofrer estresse prolongado. Não podemos ignorar isso”, afirmou à Super. Organizações internacionais como a RSPCA e a British Veterinary Association já começaram a incluir invertebrados aquáticos em suas recomendações de manejo, embora mudanças mais amplas na indústria enfrentem desafios logísticos e econômicos.
A discussão sobre o sofrimento de crustáceos, há muito adiantada por filósofos como Jeremy Bentham e escritores como Wallace, volta a ganhar força: a questão central não é se os animais raciocinam ou falam, mas se podem sofrer. Como refletiu Wallace, “por que uma forma primitiva e inarticulada de sofrimento é menos urgente ou desconfortável para quem a inflige ao pagar pela comida resultante?”

