Eleições em 5 atos
A admirável Cássia Eller eternizou numa canção que: "quando o segundo sol chegar,
para realinhar as órbitas dos planetas,
seria necessário derrubar com assombro exemplar,
o que os astrônomos diriam se tratar de um outro cometa".
Quero dizer com isso que o processo eleitoral, cujo primeiro turno se deu no último domingo, trouxe-me conclusões implacáveis. Diante de um quadro precificado pela pressa em manter a democracia e pela prece em resistir às forças contrárias, a importância dos fatos me impõe a necessidade de colocá-los em cinco atos, antes do novo turno. E daí, que o "segundo sol" volte a se alinhar com outras órbitas dos planetas e renove a fé democrática. Vamos a eles.
Ato 1 - As narcoses das redes.
Por que se crê tanto naquilo que é propagado nas redes sociais?
O entusiasmo por se informar, através dos instrumentos da internet, foi consequência de um aparente desgaste, no modo de parcialidade promovida por dadas mídias convencionais. Ou seja, de uma hora para outra, pulverizaram-se as mídias individuais, que imbuídas muitas vezes pelo interesse informativo (mesmo sem o veio jornalístico), terminaram por ocupar esse espaço alternativo.
Porém, tem-se percebido que a reação na transição para essas mídias, a título de substituir o parcial pelo imparcial, parece ser improvável. Ou seja, os variados conteúdos das redes sociais são bem direcionados para interesses próprios, sejam institucionais, comerciais ou ideológicos. Talvez até num contexto bem pior.
Assim, o que vale mesmo na forma de audiência é aquilo que convém para quem demanda pela informação. A não ser a comodidade prática de se ter nas redes sociais uma maior soberania desse consumo, a audiência se estabelece do jeito e da forma que o interessado quer, numa espécie de "video on demand". Assiste-se ao que convém.
Nessa massificação de conteúdos nas redes sociais, explicada pela falta de preparação acadêmica formal, o que se nota são "amadores" na busca por informações jornalísticas, falando mal e do que não entende. Esse casamento entre o despreparo no conteúdo e na forma de disponibilizar a informação, frente a um público já doutrinado, representa o pior das mundos. Ou são "fakes", ou então, formas terríveis de expor opiniões. Um elemento viral duplamente perigoso: pela propagação rápida e pela mediocridade do conteúdo.
Pior: nessa cartase maniqueísta em que se transformou o mundo, exercida pelas excentricidades de uma narcose digital, o debate saudável virou guerra mortal contra os inimigos. Pautou-se o confronto entre fanáticos.
Ato 2 - As reações dos fanáticos.
Quando diferentes vontades abraçam as causas de falsas verdades, os riscos de fanatismos passam a existir e daí se aproveitam dos humanos mais frágeis.
O fanatismo não convive com o discernimento. Se os estúpidos dispensam as explicações, os fanático não as toleram e sequer as admitem.
Diante do impacto dessa revolução digital, uma espécie de dopamina processada pelas redes sociais, age como catalisadora do fanatismo moderno. A exacerbação desse estágio deixa o ser humano reduzido a tal nível de ignorância, que até negar a ciência virou algo natural. Uma configuração tal que só explica o quanto a fé sem ciência reforça o caminho até o ápice do fanatismo. E o pior disso é sua defesa ao extremo, passo firme que contribui para aguçar a polarização.
Ato 3 - Os riscos dos pólos.
Para este processo eleitoral, posso dizer que, tecnicanente, o nível máximo da polarização foi atingido há cerca de um ano ou pouco mais. Tomo como referência a divulgação da primeira pesquisa. Afinal, dela até as demais que foram difundidas às vésperas do pleito, esse fato foi um marco. Esse perfil polarizado ficou claro na inércia constatada, que bem sinalizou para o duplo protagonismo e sem espaços para avanços dos demais postulantes.
Ato 4 - As serventias das pesquisas.
Pesquisas eleitorais têm mesmo suas serventias. São balizadoras, delimentam preferências momentâneas, de sorte que não podem ser entendidas como prognósticos. Talvez o negacionismo científico explique os rancores conspiracionistas, que extrapolam questionamentos aceitáveis sobre metodologias, amostragens, erros e omissões. A ferramenta é quantitativa, mas quando se envolve comportamento humano que exige percepções qualitativas, não se trata aqui de uma ciência exata.
Acho que as distorções confirmadas pelo pleito, diante do que as pesquisas apontavam, cabem explicações e correções. São também lições eleitorais que exponho no quinto e último ato.
Ato 5 - As lições das eleições.
Além de aspectos como uma polarização perniciosa que, ao tirar o debate programático do foco, pôs o processo eleitoral na rota de um mero plebiscito, outros pontos precisariam ser repensados. Tudo em nome da sacralização da democracia. Ate nesmo as pesquisas precisariam ser temporalidades, desde que fossem esclarecidas como uma ferramenta de tendências.
No entanto, a maior de todas lições, na minha modesta percepção, tem algo implacável: o primeiro turno foi o próprio segundo turno. A conclusão é forte, mas me baseio em dois aspectos: a resistência da inércia que segurou a polarização pelo fanatismo e pelo que pode justificar, qualitativamente, o que as pesquisas não captaram. Irei explicar.
Primeiro, como a inércia foi suflagrada pelas urnas, o que se viu no primeiro turno foi um ensaio próximo do que será o segundo turno. Ao se observar que a surpresa não captada pelas pesquisas foi a competitividade maior do candidato Bolsonaro, pouco se discutiu de onde vieram os votos, uma vez que os demais candidatos tiveram resultados dentro da sua margem de erro. Isso leva a crer em dois efeitos típicos de decisões de última hora: mudança de candidato ou alteração de comportamento no trinômio abstenção, nulos e brancos. A mudança de voto foi mínima e ocorreu. Entendo que a pregação do "voto útil" para Lula foi desprezível, de tal modo que, contrariamente, pode ter despertado a "utilidade" do voto nos eleitores de Bolsonsro não captados, por ter aguçado o fanatismo do seu lado, contra o adversário e o seu partido. Isso também explica o segundo movimento, pois esse sentimento antagônico à pissibilidade de Lula levar no primeiro turno, fez com que brancos e nulos fossem menores (a abstenção se manteve).
Tudo isso dá algum sentido de explicação ao fato das pesquisas não terem enxergado esse crescimento de Bolsonaro. Ou seja, a sequência que aqui expus da inércia, da polarização e do fanatismo foi um efeito qualitativo de ultima hora. O voto útil foi tiro no pé para Lula, a ponto da possibilidade de um triunfo em primeiro turno trazer para a baila o vigor do bolsonsrismo.
A dívida agora é saber se esse ânimo se repete, diante do que hão dizer as urnas com os votos dados, principalmente, para Tebet e Ciro, bem como se darão as abstenções. Nulos e brancos terão menor efeito agora.
*Economista e colunista da
Folha de Pernambuco
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