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LIVRO

Em autobiografia, Papa Francisco narra trajetória pessoal e denuncia 'tragédia da migração'

Em 'Esperança', o falecido Pontífice conta sobre uma rara janela para a vida interior e exterior de um homem querido e complexo

Papa FranciscoPapa Francisco - Foto: Filippo Monteforte / AFP

Em 1927, Giovanni Angelo Bergoglio, um camponês italiano que se tornou comerciante, comprou uma passagem para si, sua esposa e seu filho rumo à Argentina, a bordo do navio SS Principessa Mafalda. Essa viagem, partindo de Gênova, terminaria em tragédia na costa do Brasil, quando o navio afundou, matando centenas de pessoas, em um desastre que faria com que o Principessa Mafalda fosse conhecido como o “Titanic italiano”.

Mas os Bergoglio — os avós e o pai do homem que se tornaria o Papa Francisco — não estavam a bordo. De última hora, decidiram ficar para terminar de vender seus bens, partindo para a Argentina um ano depois. Francisco, que morreu na segunda-feira, relata essa história em "Esperança", sua autobiografia escrita com Carlo Musso e publicada no início deste ano.

A fuga por pouco da tragédia do Principessa Mafalda não foi a única sorte dos Bergoglio. Eles conseguiram trabalho em uma empresa familiar de pavimentação e tornaram-se da classe média, enquanto muitos dos milhões de imigrantes que foram para a Argentina vindos da Itália e de outros países “enfrentaram uma realidade dura e difícil, como um tapa na cara.”

Em "Esperança", Francisco conecta essa história ao drama global dos migrantes modernos, condenando aqueles que se isentam da responsabilidade pela “tragédia da migração.” Seu último discurso público, no Domingo de Páscoa, teve um tom semelhante, criticando aqueles que incitam o “desprezo” contra os migrantes.

A Buenos Aires da juventude de Francisco é descrita como um paraíso de tolerância. “Nossa família sempre teve ótimas relações com os judeus,” ele escreve. “Tínhamos vários amigos muçulmanos.” As prostitutas que viviam perto da casa da família, no bairro operário de Flores, eram tratadas com compreensão. Essa descrição remete às virtudes defendidas pela Igreja Católica moderna, que, desde as reformas do Concílio Vaticano II nos anos 1960, busca ser mais compassiva e construir laços com outras religiões. É uma visão idealizada de uma Argentina dos anos 1940, onde o nacionalismo antissemita estava em ascensão.

Francisco e a esquerda latino-americana
Francisco escreve também sobre conflitos políticos e como sua própria conversão ao peronismo o colocou em rota de colisão com sua família anti-peronista. Certa vez, um tio irritou tanto Francisco que ele pegou um sifão de soda e espirrou na cara dele.

Francisco foi elevado ao papado em 2013, após uma onda de vitórias políticas de esquerda na América Latina ao longo de uma década. Como o primeiro Papa da região — e o primeiro da ordem jesuíta, conhecida pelo foco no alcance social — sua eleição pareceu mais uma vitória da “maré rosa”, especialmente quando ele colocou temas como migração, mudanças climáticas e crítica ao lucro predatório no centro do debate.

Mas 2013 acabou sendo o auge dessa maré rosa — e Francisco, assim como muitos líderes de esquerda na América Latina, por vezes teve dificuldades em cumprir as mudanças prometidas, em meio à crescente polarização entre tendências conservadoras e liberais dentro da Igreja.

Ele foi criticado — inclusive por setores da esquerda argentina — por suas ações como superior provincial da ordem jesuíta na Argentina durante a ditadura militar, que governou de 1976 a 1983, quando foi acusado de entregar dois padres que foram sequestrados pelo regime. Em "Esperança", ele nega essas acusações, argumentando que “fez de tudo” para libertar os jesuítas sequestrados, inclusive apelando a Jorge Rafael Videla e Emilio Eduardo Massera, duas figuras centrais da ditadura. Mas também admite — sem entrar em detalhes — que “cometeu muitos erros” naquele período. Os dois padres foram libertados após cinco meses.

Alternando entre condenações à indiferença diante do sofrimento humano e memórias doces e amargas da juventude de Francisco, "Esperança" é metade sermão, metade memórias. Uma janela fascinante para a vida interior e exterior de um homem excepcionalmente poderoso e querido, o livro é por vezes comovente, franco e reservado. O texto é recheado de referências — filmes de Fellini e Rossellini, trechos de Eduardo Galeano. Elas sugerem uma erudição ampla, mas não isenta de lacunas: em certo momento, Francisco cita o sociólogo Zygmunt Bauman para afirmar que a comunidade é “sempre algo bom.” Mas Bauman, na obra citada, na verdade diz que comunidade é um ideal inatingível: “infelizmente, não disponível para nós.”

A Igreja e a América Latina
Francisco escreve que a Igreja Católica na América Latina “é particularmente viva em sua música, suas cores, nas sutilezas que representam uma riqueza.” Qualquer pessoa familiarizada com o culto católico na região e na diáspora pode confirmar isso. Mas a Igreja também luta para manter seus fiéis. A proporção de católicos caiu nas últimas três décadas de 80% para 54% na América Latina, segundo o Latinobarómetro, enquanto o ceticismo religioso e o protestantismo evangélico avançam de lados opostos do espectro sociocultural.

Em "Esperança", Francisco propõe uma visão para o futuro da Igreja: ele incentiva o clero católico a “[sair às ruas]” e, sobre temas culturais delicados, afirma que “tradição significa seguir em frente” e que a homossexualidade é “um fato humano” que a Igreja deve aceitar (embora não celebrar). Essa posição, que soa conservadora para muitos, continua altamente controversa dentro de amplos segmentos da hierarquia da Igreja — uma divisão que certamente influenciará na escolha do próximo Papa.

O livro não menciona, no entanto, que o catolicismo está perdendo espaço na América Latina — nem Francisco oferece uma resposta clara à pergunta sobre por que as pessoas do mundo deveriam seguir a Igreja Católica hoje. Ao focar na defesa dos grandes legados dos anos 1960, como o ecumenismo e a missão social renovada, Francisco pode ter deixado de lado uma prioridade fundamental para o catolicismo em uma América Latina religiosamente mais competitiva: a sobrevivência. Seu sucessor talvez não tenha o mesmo luxo.

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