A arte é longa. A vida é breve
“Palmas pra ala dos barões famintos, o bloco de Napoleões retintos, os pigmeus do boulevard. Meu Deus, vem olhar, vem ver de perto a cidade cantar, evolução da liberdade, até o dia clarear”.
Vai passar, Chico Buarque
A democracia, alguém o disse, é uma flor. Tenra. Precisa do zelo de um jardineiro. Para ser regada. A fim de se manter viçosa. Na perspectiva de seu recorte social, democracia é classe média. Porque a classe média é o veio orgânico da democracia. A classe média é emprego, renda, educação, consciência, autonomia, participação. Estes são os elementos que conferem à democracia a liberdade de pensar. Criticar. Fazer o príncipe voltar atrás.
Alguns dos movimentos sociais da modernidade foram alimentados pelas classes médias. Por sua extensão. Consistência. E capacidade de expressar a vontade de maiorias. Foi assim em 1958, na França. Quando De Gaulle instituiu a Quinta República por reclamo dos franceses. Foi assim em 1977, na Espanha. Com os Pactos de la Moncloa. Para consolidar a transição democrática pós-franquista. Foi assim em 1992, no Brasil. Quando o ex-presidente Collor pediu para a população se vestir de verde e amarelo. E ela se vestiu de preto. O resultado foi o impedimento presidencial.
A democracia não se esgota no voto. O voto é instante cristalizador da vontade popular. É momento mágico de conjunto de fazeres políticos e sociais. Que envolve compromisso e orçamento. Propósito e execução. Projeto e entrega. Esta é a fisiologia da política. Passa pela brisa primaveril da persuasão. Aterrissa no doce olhar de convencimento. E ganha o sol da realidade no gesto de votar.
A classe média é uma mulher fascinante. Vem assumindo seus papeis ao longo do tempo. Com muita luta. E elegância. É dona de sereno ritmo de avaliar. Sabe pedir. Propor. Esperar. E sabe também ir à rua. Cobrar. Pressionar. É o que ocorreu domingo passado. A classe média, feminina e determinada, dispensou o langor dominical. E fez-se ouvir. Contra a impunidade. E contra a anistia. Sem rancor. Com alegria. E amor. Segurando a bandeira brasileira. Não a estrangeira. Cantando.
Porque a vida é arte. Imagine o azul de domingo em Copacabana. Calor que era um misto de verão e emoção política. No palanque, Chico Buarque, Caetano Veloso e Paulinho da Viola. Três oitentões. As cãs brancas. E o corpo inteiro. Vivem, cantam. E se juntaram. Para testemunhar. Quando a vida precisa, eles chegam. Com arte. Para dizer que a beleza é necessária. Mais do que a feiura de negócios escusos.
Quando a vida precisa, eles trazem o belo. No estandarte, a canção. O equilíbrio da harmonia entre Beatriz e Barbara. E a paisagem amorosa de um rio que passou em minha vida. Corações afinados. No tom certo. Só faltou Jobim.
Quando a vida precisa, eles chegam. Com semblantes dignos e confiantes de outras lutas, de sempre. Pela lei, pela República, pela democracia, pela inteligência. Viva a cultura!
Quando a vida precisa, eles vêm. Na brisa mansa de Copacabana, cheirando a democracia. O povo, lúdico, lúcido, brincante na rua. A coragem no peito. A decisão na mão.
Quando a vida precisa, eles estão a postos. Com seu talento, sua arte. Senso do dever. De colocar um pedaço de sonho no asfalto do cotidiano. A arte da vida é fazer o certo, o belo. A arte é longa. A vida é breve.
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