A volta de Marco Polo
Marco Polo voltou em pleno Século XXI. Não o veneziano das “Do Livro das Maravilhas”, muito menos o viajante das “Cidades Invisíveis” de Italo Calvino, mas um personagem imaginário, que ficou na China, adormecido e embebido de sua cultura e contradições, desperto na memória ávida dos chineses, convocado a testemunhar a nova saga da humanidade, de volta ao mundo ocidental com novos negócios através das “Novas Rotas da Seda”, não mais das especiarias, sedas ou porcelanas, mas de algo muito mais valioso, aprendido com muito sacrifício e esforço; dados, cabos, satélites, câmeras, chips e cérebros.
No Ocidente, seguimos entretidos com slogans românticos estampados em camisetas: Che, Marx, Lênin. Ícones de uma juventude que não precisou pagar o preço do sacrifício - não pagou mesmo, comparando-se as mazelas brasileiras às da China milenar. Uma juventude ainda anestesiada por sistemas educacionais que preferem o conforto da igualdade artificial à dureza da competição real. Enquanto isso, na China, cada jovem é instado a competir — e competir intelectualmente, sem trégua. O resultado está diante de nós através da construção silenciosa, paciente e inescapável de uma hegemonia digital bastante próxima, capaz de dividir com os E.U.A. esse protagonismo no século XXI.
O FMI estima que a China ultrapassará os Estados Unidos em termos de PIB nominal até o ano de 2030, tornando-se a maior economia do planeta nessa métrica. A velocidade de crescimento do PIB da China em termos nominais é impressionante que entre 1980 e 2020, o PIB da China tenha crescido 51 vezes, enquanto o PIB dos Estados Unidos terá apenas 8 vezes. Isso é significativo, muito embora, em relação ao PIB per capita, o F.M.I. também afirma que a liderança norte-americana em comparação com a China seguirá intocável por muitos anos.
É irônico o chamado “Comunismo Chinês” não ser comunista. Um paradoxo ideológico, acalentado por uma esquerda capenga da América Latina. Há na China uma engenharia híbrida, quase alquímica, que mistura Estado, mercado e disciplina coletiva em doses que o Ocidente nem ousa imaginar. A China observou o fracasso soviético e o delírio maoísta, e decidiu costurar sua própria versão da história. Enquanto nós, no Brasil, seguimos brigando por fantasmas — esquerda x direita, comunismo x capitalismo, passado idílico x futuro imaginário — Pequim desenha um projeto que independe de ideologia; o projeto da supremacia.
Talvez nem todos conheçam a Belt and Road Initiative (BRI). Portos, estradas, ferrovias, oleodutos. O mapa físico da nova integração. Mas tenho certeza que, dos que conhecem, poucos atentam para a sua versão mais estratégica; a Rota da Seda Digital. Listo aqui algumas referências e dados: 76 países já receberam cabos de fibra ótica chineses; 56 países instalaram sistemas de vigilância e cidades inteligentes “made in China”; 21 países utilizam seus equipamentos de telecomunicações; 27 países recebem aparelhos conectados, smartphones, antenas e sensores.
Na Zâmbia, a ZTE e a Huawei transformam Lusaka em um laboratório de vigilância com reconhecimento facial, enquanto data centers armazenam os dados do governo. Nas Ilhas Maurício, quatro mil câmeras chinesas vigiam o espaço público. No Brasil, já recebemos quase um bilhão de dólares em investimentos apenas em projetos ligados à Rota da Seda Digital (dados de 2017). E não é só infraestrutura; a Megavii já opera sistemas de
reconhecimento facial em shoppings cariocas. É a versão moderna do velho mercador, entretanto, agora o “produto” somos nós, nossos hábitos, nossas compras, nossos rostos, nossos dados.
As empresas ocidentais reclamam e dizem que não conseguem competir porque os chineses não jogam o mesmo jogo. Claro que não. Enquanto nós seguimos presos ao puritanismo regulatório ou à liturgia do “livre mercado”, a China injeta bilhões de dólares em suas empresas e as envia para o mundo como tropas silenciosas de ocupação tecnológica. Os Estados Unidos, incomodados, convenceram Austrália e Nova Zelândia a banirem a Huawei do 5G, alegando riscos à segurança nacional. Mas é tarde. A maré já subiu e alcançou as praias da África, da Ásia e da América Latina.
Marco Polo, se estivesse vivo, não precisaria escrever outro livro de viagens. Bastaria abrir um mapa digital e seguir o rastro dos cabos submarinos, dos satélites no espaço e das antenas instaladas em nossas cidades. Ele sorriria com ironia: “As rotas mudaram, mas a lógica é a mesma. A China sempre pensa a longo prazo. Vocês, não”. O Brasil já está dentro dessa rede. Mas a questão crucial é se desejamos realmente ser sujeitos da história, ou apenas usuários passivos das redes que outros constroem? Marco Polo voltou. E trouxe um aviso!
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