Sex, 05 de Dezembro

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OPINIÃO

Cair, se levantar e recomeçar: fazer do medo uma escada

Tenho uma filha de 4 anos e estávamos brincando em uma grade de escalada horizontal no parquinho de um clube. Por um erro em nossa comunicação sobre a minha função diante de uma nova manobra, eu não a segurei adequadamente e ela acabou levando uma queda. Naturalmente, pelo susto, seguiu-se um grande choro de dor e eu, prontamente, fui acolhê-la com o abraço mágico e carinhoso que tudo cura. 

Envolta nos sentimentos da brincadeira frustrada, ela estava irritadíssima e, com certa razão, me culpando pelo acontecido. Correu para longe do parque, pediu para irmos embora e me comunicou que nunca mais iria naquele brinquedo. Enquanto oferecia minhas desculpas pelo acidente e dava o tempo necessário para ela se regular emocionalmente, perguntei-me interiormente qual seria a atitude mais adequada como mãe-educadora naquela situação. 

Questionei-me se eu deveria apenas respeitar o seu desejo de ir embora ou se eu deveria incentivá-la a tentar a mesma brincadeira novamente. Ambos os caminhos seriam corretos. Mas, como pais, é um esforço contínuo nos questionarmos e tentar refletir como podemos utilizar cada pequeno momento da vida de nossos pequenos como uma valiosa lição de vida para eles. 

Quase como que imediatamente, ressoou em minha mente uma frase de Fernando Sabino que - curiosamente - aprendi com o meu pai: “Fazer da queda um passo de dança e do medo uma escada”. Ainda acolhida em meu abraço, levantei-me e começamos a caminhar pelo parquinho novamente. No meu colo, expliquei para ela o quanto seria importante ela tentar a manobra de escalada novamente para que ela não fosse vencida pelo medo e a assegurei que eu estaria ainda mais atenta ao meu papel de segurá-la após o pulo final. Ela expressou receio em tentar novamente, mas não deixou aquele medo a dominá-la de enfrentar o temido brinquedo. 

Assim, respirou fundo, fechou os olhinhos, se concentrou e usou, literalmente, daquele medo como a escada para escalar a desafiadora grade. Eu que, no início, achei que a estava ensinando, recebo um exemplo de pura resiliência da minha tão especial filha. Perguntei-me quantas vezes nós mesmos já fomos vencidos por nossos medos, acovardamentos e descompassos. É a grande arte do bem-viver levantar-se graciosamente após um fracasso ou erro e ainda saímos mais fortalecidos e evoluídos com a experiência da queda. 

Recomeçar é a imprescindível tarefa diária que alimenta a nossa contínua construção como pessoas. Todos os dias precisamos fazer o enfrentamento de nossas pusilanimidades e fugir delas é perdermos a oportunidade de nos fortalecermos. 

Um dos clássicos da literatura estadunidense é “O velho e o mar” de Ernest Hemingway. A história do livro fala de Santiago, um velho pescador que está há 84 dias sem conseguir pescar. Na vila de pescadores onde mora, ele está desacreditado e com certa superstição, as pessoas não querem mais se associar a ele. Disposto a provar seu valor, ele sai um dia com seu barquinho e decide navegar até águas mais profundas, começando uma jornada para fazer a maior captura de sua vida. E ele consegue. São dias e noites tentando trazer o grande peixe Merlin para casa Ao precisar matar o peixe, pois sua resistência estava impedindo o barco de bem navegar, seu sangue chama um cardume de tubarões. O velho pescador tenta, sem sucesso, proteger sua pescaria da destruição dos predadores. O livro termina com Santiago chegando na sua aldeia, completamente destruído pelo cansaço dos dias e noites ao mar e trazendo apenas a carcaça do grande peixe. Ele desce do barquinho em frente a todos os amigos-pescadores e desaba de exaustão. 

Ao longo da leitura do livro, queremos que Santiago chegue na beira-mar de sua aldeia com o grande pescado nas costas, sendo ovacionado por todos os seus amigos que lhe deram as costas e ele ganhe rios de dinheiro com a carne de sua caça. É possível imaginar a cena e pedir esse enredo ao autor. 

Como seres humanos, parece que a história dos vitoriosos é a única que merece ser contada. Todavia não é assim que o livro termina. Ele vai para casa, toma café, lê o jornal e vai dormir com o convite de um amigo para pescar novamente na manhã seguinte. Minha filha e Hemingway ensinando-nos em simples enredos sobre a preciosa arte do recomeço e da importância de nos desafiar. 

Não há como desfrutar da condição humana sem tocar as quedas, mas certamente elas são o principal caminho para alcançarmos a sabedoria. De vez em quando é necessário perder as proteções que a vida adulta nos empresta e permitir-se dançar, sair do ritmo, cair, levantar e escalar as grades de nossas limitações e zonas de conforto.

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