Da literatura de Machado à filosofia de Platão: os limites da ética entre Jacobina e Giges
À primeira vista, o título acima parece tão complexo quanto rebuscado. Talvez até, isso induza o leitor a achar que o texto seja muito filosofal e literário. Mas, deixei-o assim, porque creio que há como simplificá-lo. É bem melhor fazê-lo entender no meu sutil propósito maior, de mexer com a ética dissimulada que permeia nossa sociedade. Mais ainda afetada, em tempos de antagonismos acalorados e até violentos.
De passagem, antecipo meu entendimento de que os abalos éticos que se mostrem tão profundos, não me parecem ser meras consequências das diversidades. Claro que a natureza plural da sociedade brasileira costuma impor todas as formas possíveis de contrastes. Entretanto, penso que na essência da nossa formação social, há uma outra marca da genética, justo aquela que se prende ao contraditório, à dissimulação.
De fato, o que me interessa considerar é um realismo atual e que foi muito bem narrado por contas e crônicas do genial Machado de Assis, em pleno século XIX. Numa dessas escritas machadianas, algo clarividente está na obra O ESPELHO (conto integrante do livro PAPÉIS AVULSOS, publicado em 1882), de onde se extrai e se releva a esperteza do personagem vivido pelo alferes Jacobina. Diante da percepção que pode ser refletida por um simples espelho, não há como desconsiderar que por trás daquela imagem é bem possível se ter uma reflexão diferente. É possível daí se ter uma “alma externa”, ligada ao status e prestígio social. Ou melhor: a imagem que os outros fazem da gente, é bem mais importante do que a “alma interna”, a que guia nossa personalidade.
No caso, diante do espelho, Jacobina só se via com nitidez, sem que a imagem se mostrasse difusa ou corrompida, quando ele punha a farda de alferes. Uma típica postura ética, tratada pelo olhar do cronista crítico, que percebe com sutileza e ironia o traço desigual de sociedade. Noutras palavras, já naquela época e no mais puro exercício do realismo literário, Machado trazia nos seus contos as reações de uma sociedade exposta às suas próprias contradições. Um exemplo clássico? O modo dissimulado pelo qual o apartheid racial foi tratado ao longo da nossa formação social, com consequências que resistem até os dias de hoje.
O outro ponto que aqui agrego à tal postura ética, vem da tradicional filosofia grega, mais precisamente, do universo cognitivo de Platão. Aqui me refiro à história criada pelo ideário genial do filósofo, na qual o pastor Giges protagoniza o efeito misterioso de um simples anel, cujo uso parecia revelar poderes extraordinários. Isso se dava por conta do anel permitir a capacidade de fazer do seu usuário um ser invisível. Bem, ao trazer esse velho ensaio de "poder" para uma discussão sobre a ética aplicada à nossa vida atual, reporto-me à essência do tema, pelas mesmas percepções de um pensador brasileiro: Eduardo Giannetti. Isso porque é dele o resgate do tema relacionado com o anel de Giges. Aliás, título do seu livro recente, cuja intenção parece mirar para o padrão ético da nossa sociedade, quando posta diante de uma intuição de ser e agir no modo invisível. Certamente, por mexer com sentimentos e comportamentos que dão sustentação ao jeito de ser e viver do brasileiro.
Diante do que expus até aqui, o leitor atento poderá me questionar no seguinte ponto: qual é mesmo o caldo que se pode extrair dessa mistura - meio que extravagante - de Machado com Platão? Qual é mesmo o grau da prevalência ética que se pode retirar dos "segredos de liquidificador" de Giges e Jacobina (com a devida licença de Cazuza, pelo uso do termo)?
Creio que tenho motivos por me arriscar nessa insólita atitude. O exercício da cidadania brasileira, em larga medida, sustentado no subterfúgio de que há um "jeitinho" próprio para tudo, parece-me uma referência ética estranha e questionável. Essa figura nem tão cidadã está do outro lado de um espelho, conforme retratado por Machado, na postura de Jacobina. Da mesma maneira, que pode ser encarada numa invisibilidade tal e qual posta pelo anel de Giges. Aqui, no sentido de usá-lo sem limites e escrúpulos, para exercer toda uma dissimulação, como se não pudesse ser notado. Num caso ou no outro, o senso ético parece ignorar diversidades, preconceitos ou situações que possam trazer ao pódio os meios necessários para se restaurarem a empatia e o humanismo.
No desfecho deste texto, trago um exemplo que possa traduzir essa minha mera percepção. Para isso, nada tão atual que a tragédia que tanto maltratou o meu querido povo gaúcho. Em discretas situações observadas na gravidade do problema em si, sirvo-me do abuso do contraditório. De quem submerge e se mostra abertamente como solidário, mas esconde para por baixo da lama, seu papel de contribuinte do próprio problema. Ou seja, muitos dos que ajudaram, direta ou indiretamente, defendem e/ou aplicam ideais que agridem à natureza. De sustentável, apenas a fragilidade, quase que oportunista, de um sentimento que está do lado de cá do espelho. Ou mesmo, do contexto onde só se mostra o visível.
Infelizmente, esse é o e velho grave contraste de uma identidade nacional, que a sociedade não soube controlar. É por isso e outros pontos sintonizados, que cabem Machado e Platão. Ou melhor: que ainda há brasileiros com os traços de Jacobina e Giges. Com espelhos e anéis.
*Economista e colunista da Folha de Pernambuco