Sáb, 06 de Dezembro

Logo Folha de Pernambuco
opinião

Do mimeógrafo à inteligência artificial

Quando comecei a lecionar, em 1975, o som mais característico da preparação de uma aula era o do mimeógrafo. O cheiro do álcool impregnava as folhas que eu entregava aos meus alunos, e aquilo era considerado um avanço. Naquele tempo, as salas eram organizadas de forma rígida, em fileiras, o professor no centro como única fonte do saber, e a memorização era vista como a principal ferramenta pedagógica. Passados cinquenta anos, sigo dentro da mesma escola, mas diante de um mundo que mudou radicalmente. Hoje, a inteligência artificial atravessa nossas rotinas e nos desafia a pensar não apenas sobre como ensinar, mas também sobre o que ensinar.

Olhando para trás, vejo que a história da educação brasileira dos últimos cinquenta anos é também a minha própria história. Testemunhei três gerações de uma mesma família ocuparem as carteiras de sala de aula. Vi a transição do livro de caligrafia para os tablets, do giz branco para os quadros digitais, da enciclopédia para o Google. Experimentei a máquina de escrever, depois o computador, e finalmente os ambientes virtuais que nos foram impostos durante a pandemia. 

Confesso que, naquele momento, pensei que não conseguiria. Passei noites sem dormir, com medo de fracassar diante da tela. Como dar aulas pelo computador? Como manter o vínculo humano através de uma câmera? No entanto, aprendi, me adaptei, e descobri que a tecnologia pode ser uma aliada, desde que nunca se sobreponha ao olhar, ao cuidado e ao afeto que caracterizam a relação professor-aluno.

É impossível falar sobre essa evolução sem tocar nas contradições do país. A inovação chegou, sim, mas não de forma igual para todos. Enquanto algumas escolas investem em plataformas digitais, outras ainda carecem de infraestrutura básica. No mesmo Brasil em que falamos de inteligência artificial, há professores que lutam para ter giz, cadeira ou até merenda. É esse abismo que continua a marcar a educação brasileira, revelando que a tecnologia por si só não resolve desigualdades históricas.

Outro desafio é a valorização do professor. O estudo do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp), que projeta um déficit de 235 mil docentes até 2040 é alarmante. Não se trata apenas de números: trata-se do risco de comprometer gerações inteiras. A carreira docente, majoritariamente feminina, ainda é atravessada por baixos salários, excesso de trabalho e pouca valorização social. Sobrevivi a isso porque tive o privilégio de permanecer numa instituição que respeitou minha trajetória, mas sei que minha experiência é exceção. O comum hoje é a rotatividade, a precarização dos contratos temporários e a sensação de desânimo que afasta os jovens da profissão.

E, no entanto, sigo acreditando. A cada manhã em que abro a porta da sala de aula, encontro sentido no que faço. Continuo porque acredito no poder transformador da educação, e porque sei que, apesar de todas as dificuldades, ainda é possível inspirar, acolher e formar cidadãos críticos. Ao longo das décadas, aprendi que a educação é, antes de tudo, uma relação de confiança. E nenhuma máquina pode substituir isso.

Se a inteligência artificial nos desafia a reinventar o ensino, cabe a nós garantir que ela seja ferramenta e não fim. O futuro da educação não pode se resumir a algoritmos; precisa ser construído sobre valores de ética, respeito, diversidade e amor pelo conhecimento. Não basta que as crianças dominem ferramentas digitais, é preciso que saibam pensar, questionar e criar.

Do mimeógrafo à inteligência artificial, a grande lição que levo é que o professor continua sendo insubstituível. Podemos usar todas as inovações tecnológicas, mas é a presença humana, o olhar que acolhe, a palavra que encoraja, o gesto que reconhece, que de fato marcam a vida de um estudante. Foi isso que fez com que ex-alunas se tornassem professoras, que filhos de antigos alunos confiassem em mim seus próprios filhos. É isso que ainda me move.

Ao completar cinquenta anos de sala de aula, não penso apenas no passado, mas no futuro. O Brasil precisa decidir se quer de fato investir na educação como prioridade nacional. Precisamos de políticas que formem e mantenham professores, que valorizem a profissão e que democratizem o acesso à tecnologia. Sem isso, corremos o risco de termos máquinas cada vez mais sofisticadas, mas escolas cada vez mais vazias de mestres.

A educação é uma obra coletiva e permanente. E, enquanto eu tiver forças, continuarei a contribuir para que ela se desenvolva cada vez mais. Porque, no fim das contas, nenhuma inovação tem valor se não estiver a serviço de um ideal maior: formar seres humanos mais conscientes, livres e solidários. Esse é o compromisso que assumi aos 22 anos e o qual continuo honrando até hoje.
 


___
Os artigos publicados nesta seção não refletem necessariamente a opinião do jornal. Os textos para este espaço devem ser enviados para o e-mail [email protected] e passam por uma curadoria antes da aprovação para publicação.

Veja também

Newsletter