Fraude material nas relações conjugais: um desafio ético e jurídico
A fraude material no casamento e na união estável tem se tornado um dos maiores desafios do Direito de Família contemporâneo. Mais do que uma tentativa de lesar o patrimônio do outro, trata-se de um ato de deslealdade que corrói a confiança, fere a função social da família e abala as bases da convivência.
Quando um dos parceiros decide ocultar bens, simular dívidas ou realizar negócios fraudulentos para obter vantagem patrimonial, a situação ultrapassa o campo dos conflitos conjugais. É uma conduta dolosa com graves consequências jurídicas, que muitas vezes deixa o elo mais vulnerável da relação — geralmente quem dedicou tempo e esforço à construção do patrimônio — em posição de injustiça e de desamparo.
Essas fraudes se manifestam de diferentes formas: transferência de bens a terceiros, criação de dívidas fictícias ou alienação de patrimônio sem o conhecimento do outro. Em todos os casos, o objetivo é o mesmo: prejudicar a partilha e obter vantagem ilícita. Diante disso, o papel do Judiciário é fundamental para restabelecer o equilíbrio, proteger a parte lesada e garantir que a dissolução da união ocorra de forma justa, com base na boa-fé, na dignidade e na proteção do vulnerável.
Do ponto de vista jurídico, a Constituição Federal de 1988 assegura a proteção da família como base da sociedade (art. 226) e consagra a dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, III). Esses princípios servem de norte para interpretar e aplicar as normas infraconstitucionais em casos de fraude patrimonial no âmbito familiar. O Código Civil, por sua vez, estabelece o dever de lealdade e respeito mútuo entre os cônjuges e companheiros (art. 1.566) e prevê a possibilidade de anulação ou revisão de atos jurídicos que violem a boa-fé (arts. 113 e 422).
O enfrentamento desse tipo de fraude exige não apenas atuação firme da Justiça, mas também um olhar atento dos profissionais que acompanham o processo. Advogados, magistrados e representantes do Ministério Público têm papel crucial na identificação de indícios, na coleta de provas e na aplicação de medidas capazes de resguardar o patrimônio e a dignidade de quem foi lesado. Nesse contexto, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem reconhecido reiteradamente que a ocultação de bens ou a simulação de dívidas em prejuízo do outro cônjuge ou companheiro constitui violação à boa-fé objetiva e pode ensejar a anulação dos atos praticados.
Além disso, é preciso reconhecer o caráter pedagógico das decisões judiciais nesse campo. Ao coibir práticas fraudulentas e responsabilizar os envolvidos, o Judiciário reforça a mensagem de que a união familiar deve se pautar pela transparência, lealdade e solidariedade. A proteção da parte vulnerável não se limita à partilha de bens, mas se estende à preservação da confiança social na instituição da família, que deve ser um espaço de segurança, cooperação e respeito mútuo.
O combate a essas práticas é, portanto, essencial para que as relações afetivas mantenham sua função social e para que a Justiça atue como instrumento de reparação e equilíbrio nas relações familiares. Somente assim será possível conciliar os princípios da dignidade da pessoa humana e da boa-fé objetiva com a necessidade de assegurar a justiça material nos litígios familiares.
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