Sex, 05 de Dezembro

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OPINIÃO

Ivan Lessa e Millôr Fernandes, semana passada

A crônica de Pernambuco, com sua ponta de exagero e o olho calejado pelo sol, precisa começar com a mais pura das alucinações possível: Ivan Lessa, o “Cronista do Clima de Londres”, sentado num banquinho de praça no Recife Antigo, num sábado de mormaço que faria qualquer exilado implorar pelo smog britânico.

Ao seu lado, Millôr Fernandes, o “Pensador Inviável”, desenhava numa caderneta, não figuras grotescas do Nordeste, mas sim um organograma abstrato que tentava explicar a burrice da humanidade, um esforço tão metafísico quanto inútil.

O ar estava “patologicamente abúlico”, como diria Millôr, não pelo presidente da vez, mas pela temperatura e pelos artífices do poder atual.

Ivan, vestindo um linho que só piorava a sensação de estar cozido, murmurou: “O calor dá sono. O frio me civiliza. Meu Deus do céu, Millôr, se eu soubesse que teríamos que estar à vontade no mundo, teria ficado na Holborn Station, onde pelo menos a rotina me ajudava a me sentir menos estrangeiro... ou menos suado.”

Millôr, sem levantar os olhos do papel, disparou: “A culpa é sua, Ivan. A gente veio aqui para confirmar que o ser humano é inviável. E confirmamos. O Brasil hoje, esse Bananão turbinado a Tik Tok, faz o nosso tempo de ditadura parecer um piquenique de Lacan. Pelo menos antes, sabíamos quem nos ia cortar a cabeça, e o motivo era nobre: nossa inteligência. Hoje, cortam-na para que possamos caber no frame do politicamente correto.”

Ao longe, eu ainda tentava auscultar sem estetoscópio algo sobre o “Novo Regime da Afabilidade e o Riso Amargo”. Os dois liam, ou tentavam ler, a versão digital de um desses jornalões de secos e molhados, dos tempos atuais. As manchetes pareciam ter sido escritas por um ratinho Sig que havia sido treinado para ser submisso.

“Veja bem,” disse Lessa, ajustando os óculos, “você se lembra de quando dizíamos que a cada 15 anos o brasileiro esquece o que aconteceu nos últimos 15 anos? Tinha um lado nostálgico, quase romântico, nessa amnésia. Agora, com a velocidade da net, o lapso encolheu para cinco. Em menos de cinco anos, a gente não lembra nem quem diz que nos governa, muito menos por quê. É a história desfazendo-se em stories.”

Millôr rabiscava uma frase na margem da sua caderneta. “Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim. O problema é que a gente se acostumou a ser mandado por quem não tem sequer a decência de se assumir como ditador. Os poderes públicos atuais são a pior forma de tirania: a que não precisa de quartel. Basta que a imprensa se encarregue do serviço, com o seu jornalismo de muito baixa qualidade.”

Lessa, que fora correspondente em Londres e colaborava para a BBC, suspirou, lembrando-se dos anos do Pasquim: “A gente, na época do Pasquim, podia até inventar cartas de leitores ou xingar o Francis, mas a falta de coragem de hoje... A gente vê que falta bater com força, falta a ‘porrada’. O humor e a imprensa estão muito ‘bem- comportados’ e formais.”

Ele fez uma pausa dramática, olhando para um grupo de jovens que ria alto ao assistir a um vídeo no celular. “O que me incomoda é a ‘pegação’ transcendental. Antes, era o cara que te cutucava no elevador; agora, ele já entra assoviando dentro da sua alma com a mania de agradar. Ninguém quer dizer uma coisa contra a corrente, mesmo que a corrente seja lamentável.”
Millôr, o autodidata que gostava de desnudar o homem para perdoá-lo, ironizou a situação: “O otimista não sabe o que o espera. O problema não é o poder, é a burocracia. A burocracia é a verdadeira canalha. E a inanição intelectual e moral que o acompanha é alimentada pelo medo de ser cancelado. Antes, você era censurado pelo AI-5; hoje, você se autocensura pelo feedback da patrulha pelo humor - do Ministro.”

Eles debateram, rapidamente, a nova forma de censura. Lessa: "Naquela época, a liberdade era apenas uma lamentável negligência das autoridades. Se a censura fosse suspensa, o que se fazia? Escrevia-se algo muito mais violento! Hoje, a ausência de censura só mostra que o poder não precisa dela, pois a vontade de agradar coletiva é um censor muito mais eficiente. É um estado de exceção permanente, onde todo mundo quer ser amigo do rei, ou do Grande.”

Millôr assentiu, com um sorriso de canto de boca que significava o fracasso de qualquer projeto humano. “Os maiores censores que conhecemos, aqueles que nos prenderam por uma piada sobre Dom Pedro, pelo menos eram previsíveis! Agora, os ‘donos da verdade’ circulam livremente, e o gabarito da crítica está no chão. Se você ataca o sistema, ainda é subversivo; se ataca as novas modas, é tachado de reacionário. Por isso, o jeito é ser anarquista, contra o poder de todo tipo. É o que resta ao indivíduo. Mas...não temso censura né?”

Lessa balançou a cabeça, derrotado pelo sol de Pernambuco e pela burrice do novo século. “Eu só sei que, para escapar à realidade, hoje as pessoas assistem ao stream. Eu, que desejava apenas escapar da televisão e de tanta efusão boboca, preciso urgentemente voltar para o frio que me civiliza, voltemos Millôr?”

Millôr, então, levantou-se, jogou a caderneta no banco (afinal, quem tem obra é pedreiro) e concluiu, antes de procurar um táxi (que Millôr considerava o objeto menos livre do mundo):“Quem se curva aos poderosos mostra a bunda aos oprimidos. E, pelo visto, o Brasil nunca deu tanta bunda quanto agora. É um filme pornô com trilha de Bossa Nova. Vade!”.

 

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