Sex, 05 de Dezembro

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OPINIÃO

Linguagem clara tem valor cívico

O Congresso aprovou e o presidente sancionou a lei que institui a Política Nacional de Linguagem Simples. Um projeto de autoria da deputada Erika Kokay (PT-DF), relatado pelo deputado Pedro Campos (PSB-PE). A Lei nº 15.263/2025 virou notícia porque proíbe o uso de linguagem neutra em documentos do poder público. A partir de agora, não será permitido o uso de expressões como "todes" ou "elu" em boletins de ocorrência, editais de concurso público, formulários do SUS, publicações do Diário Oficial. Só que o texto aprovado vai muito além disso.

Resumidamente, a lei fixa regras para as comunicações no serviço público, com princípios e diretrizes para que sejam simples, claras e acessíveis. As orientações valem para União, Estados e Municípios. A Política Nacional de Linguagem Simples vai de encontro àquilo que a professora da Unicap e mestre pela UFPE, Neide Rodrigues de Souza Mendonça, descreveu em seu clássico estudo Desburocratização Linguística: Como simplificar textos administrativos, publicado pela primeira vez em 1987 e relançado neste ano.

A autora problematiza o estilo de linguagem pouco acessível usado pela administração pública, o que chama de burocratês - nas palavras dela, "uma subvariedade escrita da língua materna usada pelos membros da administração durante o seu trabalho”.

Na contramão disso, a lei recém-aprovada inclui orientações em três níveis: vocabulário, estilo textual e layout. Quanto ao vocabulário, indica o uso de palavras comuns e de fácil compreensão, além de sinônimos para os termos técnicos. Sobre o estilo textual, delineia a construção de frases curtas, em ordem direta e com apenas uma ideia por parágrafo. Quanto ao layout, recomenda o emprego de tabelas, listas e outros recursos gráficos.

Assim, vai na mesma linha do que vemos no exterior, a exemplo do Plain Writing Act, a lei norte-americana que disciplina o uso de linguagem acessível nos órgãos federais. E mesmo de exemplos locais, como a Política Estadual de Linguagem Simples, adotada pelo Governo do Ceará desde 2022.
Desta vez, aplicada em âmbito nacional, os impactos serão ainda mais significativos. Decerto estamos distantes da Lei Saraiva (1881) que limitava o direito de voto apenas aos que soubessem ler e escrever. A Constituição de 1988 assegura o direito de voto a todos os brasileiros e, mais do que isso, dispõe que “é assegurado a todos o acesso à informação”.

No entanto, boa parte da população brasileira não entende o que lê nos documentos do poder público, a começar pela própria Constituição. Em Casa-Grande e Senzala, Gilberto Freyre aponta que isso decorre da “dualidade de línguas, a dos senhores e a dos nativos, uma de luxo, oficial, outra popular, para o gasto”.

Assim permanece até hoje, como resultado da falta de políticas inclusivas para que os brasileiros deem continuidade aos estudos, inclusive os mais velhos. Em 2024, três em cada 10 brasileiros em idade adulta apresentaram dificuldades na interpretação de textos, a ponto de que foram considerados analfabetos funcionais, de acordo com a pesquisa do Indicador de Alfabetismo Funcional da Unicef.

É por isso que o uso de jargões técnicos, siglas pouco conhecidas e linguagem neutra não empresta legitimidade e exatidão ao que é falado. Muito pelo contrário: priva as pessoas de compreensão e, por conseguinte, dificulta a participação popular, o acesso aos serviços públicos e até aumenta os custos administrativos de atendimento ao cidadão.

É isso que a Política Nacional de Linguagem Simples promete transformar. Algo que, enfim, insere a linguagem no cenário mais amplo de iniciativas para melhorar o acesso da população aos espaços públicos, como as vagas reservadas, as rampas, a sinalização em braille, a audiodescrição e a interpretação de Libras.

Uma vez aprovada, o relator Pedro Campos fez questão de dedicar o projeto ao seu irmão Miguel e demais pessoas diagnosticadas com síndrome de Down: “Hoje a gente consegue avançar para que o Estado brasileiro fale simples e seja compreendido por todas e por todos”.

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