Nas favelas
O Brasil vive um tempo de muito desequilíbrio e profunda disfunção institucional, sendo a nossa Corte Constitucional, infelizmente, o palco de muitas dessas indesejáveis distorções.
Além de inquéritos sem fim, ações penais fora de sua competência, condenações sem crime, atribuição de infrações penais sem prévia definição legal de conduta típica e incursões políticas sobre os demais poderes, dentre outros atos exorbitantes, no STF se processa a ADPF das Favelas, a qual, sem nenhum exagero, é uma indefensável aberração.
Essa ação foi proposta pelo PSB - Partido Socialista Brasileiro, ao argumento de que a atuação da polícia do Rio de Janeiro nas favelas estaria em desconformidade com os direitos fundamentais da população, especialmente pelo que se denominou como sendo “excesso de letalidade policial”, a demandar, segundo a pretensão do partido político, controle e limitação pela Suprema Corte.
Apesar do discurso virtuoso em que está travestida, a ação padece de uma falácia fundamental.
Na narrativa contida na tal ADPF, tomaram-se distorções que, supostamente, estariam a ocorrer em determinadas operações policiais, como se tais fossem a tônica do trabalho da polícia nesses locais, o que, obviamente, não é verdadeiro.
Ainda que eventuais falhas operacionais da polícia ou mesmo desvios de conduta possam ter ocorrido, com recorrência maior do que um bom serviço deveria apresentar, a sua correção não caberia no espectro de uma ADPF, pois esse tipo processual-constitucional não existe senão para o controle, em abstrato, de normas, omissões e atos administrativos expedidos em violação a direitos fundamentais.
Com efeito, falhas de serviço, como as apontadas na ADPF, somente podem ser objeto de controle ordinário de legalidade, no âmbito da instância judicial competente, mediante necessária intervenção do Ministério Público Estadual, ainda que por força de representação popular ou de partido político.
Não pode o STF atropelar o sistema e avocar para si, ainda mais por provocação político-partidária, questões administrativas operacionais, a cargo de outras instâncias e autoridades, pois ser supremo não é ser universal, muito menos é ir além da constituição, concentrar poder ou cuidar de qualquer coisa, de tudo e de todos.
Além disso, ao tomar como verdade absoluta a afirmativa subliminar, que se contém na ação, no sentido de que as operações da polícia nas favelas seriam um desvio em si mesmo, e que, supostamente, os danos à população local decorreriam de sua atuação ordinária, e não, como é óbvio, do controle territorial exercido por facções criminosas enraizadas nessas áreas, a pretensão do PSB e as decisões tomadas a esse respeito negam a realidade e se materializaram como uma incontornável inversão de valores.
Com efeito, inexiste qualquer elemento sério e sóbrio que indique que a polícia do Rio de Janeiro entraria nas favelas com a intenção de matar, torturar ou agredir, estando bastante claro que as intervenções ideológicas, de políticos, ONGS e entidades afins, utilizadas como fundamento à ação, não têm a isenção necessária para servirem como provas absolutas das alegadas violações aos direitos fundamentais em referência, muito menos para estabelecer nexo entre os ilícitos e a moldura estrutural da polícia e de suas operações.
Ao contrário, a presunção possível é a de que mortes, e outros tipos de violência, são efeitos colaterais de uma guerra urbana armada, provocada por organizações que têm nítido caráter terrorista, que atacam a polícia (e quem ouse penetrar, sem autorização, em seus territórios), bem como mantêm a população refém de seus negócios escusos e como escudos humanos.
Por outro lado, ao permitir que um partido político, que, inclusive, tem representatividade parlamentar insuficiente para afirmar as suas propostas no âmbito político, utilize-se do judiciário para impor a sua ideologia, a Corte deixa-se transformar em arena política, assim como se substitui aos deveres- poderes do estado-membro, que, nos termos da Constituição, é quem tem competência para definir e executar políticas públicas na área de segurança pública.
O fato é que a ADPF das favelas é um monstrengo processual que viola os conceitos, usurpa as atribuições do poder eleito, mistura política com justiça, embaraça a atuação da polícia e atrapalha o combate ao crime, que se aproveita desse tipo de medida leniente e equivocada para se expandir pelo país.
Para terminar, somente para confirmar o dito popular, de que “aquilo que está ruim sempre pode piorar”, o que dizer da atuação do Ministro Moraes, Relator provisório da ADPF, a quem o Regimento do STF autoriza decidir “apenas medidas urgentes”, mas que resolveu ir muito além do que poderia, para conduzir a ação, de maneira para lá de heterodoxa, a ponto de ordenar a abertura de inquérito pela Polícia Federal, não sem antes listar diversas providências administrativas, a cargo do estado- membro, participar de reuniões à portas fechadas e ir, pessoalmente, ao Rio de Janeiro cobrar explicações e supervisionar o trabalho do Governador e de seus auxiliares?
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*Sócio do GCTMA Advogados, Procurador aposentado do Estado de Pernambuco, Conselheiro de Administração/IBGC.
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