Nós e eles
Nasci na capital pernambucana e tive o privilégio de morar em outros estados: BA, ES, SP, PA, MG, RN e PB. Por onde passei, aprendi várias coisas; dentre as principais, a respeitar o povo e a terra que nos acolhe. Nessas passagens, pude ver a discriminação velada em relação ao nordestino, ainda que na mesma região: nordestino criticando nordestino. O olhar de soslaio (para não dizer olhar de desconfiança) variava de acordo com a posição do envolvido na pirâmide social.
Certa vez, em São Paulo, numa reunião de três casais, veio à mesa o assunto “preconceito contra os nortistas”. Todos manifestaram-se liberais, sem nenhuma exclusão. Uma das presentes, para colorir o assunto, declarou “não tenho preconceito nenhum, eu até aperto a mão deles”. Vê-se, na frase, o que podemos chamar de discriminação enrustida. Em diferente ocasião, escutei um mineiro dizer, com “extrema sabedoria”, que o Nordeste era responsável pela situação difícil do Brasil. Em outra oportunidade, em conversa com um baiano, este excluía o seu estado do Nordeste. Tentei mostrar as regiões e os seus estados, para perguntar em qual região (Norte? Sudeste? Sul?) a Bahia se encontrava e ele, de pronto respondeu: - Nenhuma. A Bahia é a Bahia. Ele recusava-se a ser um nordestino, bastava ser baiano.
Uma vez, estava em NY City e pedi para meu sobrinho ligar para um americano que residia a cerca de 100 km de onde estávamos, para combinar uma ida nossa até a cidadezinha dele. O nativo só não desligou o telefone na cara do meu nephew, porque, em algum momento, ele falou meu sobrenome. O americano caiu na real, foi nos apanhar e nos levou de volta no dia seguinte. Detalhe: a filha dele estava hospedada na minha casa, no Brasil.
Na literatura, ao contrário do que se propaga, Euclides da Cunha não elevou o sertanejo à condição de santo nem de herói. Comumente se faz uso de frase isolada (“o sertanejo é, antes de tudo, um forte...”) para promovê-lo a padroeiro dos sertanejos. Quem leu o livro inteiro, verá que a frase solta não encaixa com o que o autor diz mais na frente, qualificando o sertanejo nordestino como “desgracioso, desengonçado, torto, Hércules-Quasimodo ...andar sem firmeza, sem aprumo...”; “agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência deprimente”; “reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene...”. Não obstante, nada disso diminui a qualidade de Os Sertões, uma obra extraordinária.
Os preconceitos “domésticos” e divisões regionais não são privilégio do Brasil. Como primeiro exemplo, mais leve, trago o do ex-presidente dos EUA, James Carter, nascido na Georgia, que era chamado de “caipira”, provavelmente um resquício da Guerra da Recessão ocorrida no séc. XIX, mas que ainda é comemorada dos dois lados, ao contrário de outros países que racharam (que se dividiram), em conflitos por questões de território, de religião, de tradições etc. e não conseguem conviver.
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