O Avanço Indiscriminado dos Cursos de Medicina
Há 58 anos, quando me formei médico, na Universidade Feral de Pernambuco tinha apenas dois cursos de medicina. A seleção era rigorosa, a formação exigente, e o médico saía para o mundo preparado para enfrentar enfermarias lotadas, maternidades desafiadoras e emergências que testavam não apenas o conhecimento, mas a alma. Hoje, somos surpreendidos com um número alarmante: 23 cursos já existentes, e mais três recém-criados, elevando a conta para 26.
Recentemente, o Presidente da República autorizou 95 novos cursos de medicina em todo o país. O anúncio, ao invés de soar como avanço, deveria acender um sinal vermelho. Porque medicina não é uma profissão teórica: não se aprende apenas em livros, apostilas digitais ou laboratórios improvisados. Medicina se aprende no contato humano, na enfermaria, no plantão exaustivo, na sala de parto, na visita diária ao leito.
O que temos hoje é uma mercantilização do ensino. Criam-se faculdades particulares em cidades sem a mínima estrutura hospitalar para suportar uma boa formação. Em Pernambuco, abriram cursos em Palmares, Limoeiro e Afogados da Ingazeira. Destes, apenas Palmares ainda reúne condições para receber uma faculdade de medicina. Afogados e Limoeiro não têm hospitais universitários estruturados. O curso é privado, a mensalidade chega a R$ 12 mil. Quem pode pagar? Os jovens recorrem ao FIES, e o fiador é quase sempre um pai assalariado, que mal sobrevive com um salário mínimo. Resultado: já acumulamos uma dívida estudantil que chega a 70 bilhões de reais.
Esses cursos, em sua maioria, não formam médicos, mas diplomados. Sem residência, sem prática, sem maturidade para encarar a complexidade da vida humana. No passado, tínhamos o chamado médico polivalente: aquele que saía da faculdade e sabia atender da pediatria à cirurgia de emergência. Hoje, muitos terminam o curso sem nunca ter passado um ano de internato real em hospitais como o da Restauração, Getúlio Vargas ou Agamenon Magalhães.
Peço desculpas aos jovens médicos, mas é preciso dizer: a essência da medicina não está no diploma, está no paciente. Está em tocar, examinar, ouvir, compreender. Não se aprende medicina como se aprende Direito, Economia ou Administração. Medicina é ciência aplicada à dor humana, e por isso exige prática, vivência e formação sólida.
O Estado comete um erro grave ao transformar a medicina em moeda política e mercantil. Quem paga o preço é a sociedade, que recebe profissionais inseguros, mal formados, sem a oportunidade de um aprendizado sério. Não se trata de elitizar a profissão, mas de protegê-la do improviso. A saúde de um povo não pode ser jogada nas mãos do mercado nem nas contas do FIES.
Medicina é sacerdócio, é prática, é vida. E vida não aceita improviso.
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