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Padre Júlio e o incômodo de um cristianismo vivido nas ruas

Há decisões que, quando tomadas, dizem mais sobre quem as pratica do que sobre quem é atingido por elas. O afastamento do Padre Júlio Lancellotti das redes sociais e das transmissões online de missas é uma dessas. Não se trata apenas de um ato administrativo interno da Igreja. É um gesto simbólico grave, que revela um desconforto profundo com um cristianismo vivido nas ruas, aquele em contato direto com a dor real, longe do conforto das sacristias.

Padre Júlio nunca foi um religioso de gabinete. Sua trajetória de mais de quarenta anos é marcada por uma presença firme e constante junto à população em situação de rua, enfrentando de perto a desigualdade social e pondo em prática uma  pastoral que não separa fé e vida. Durante a pandemia, quando o mundo se fechou em suas casas, ele seguiu nas calçadas, alimentando, acolhendo e protegendo quem sempre foi tratado como sobra social. Isso não começou ali. Antes, ele já tinha trabalhado com pessoas vivendo com HIV, com jovens privados de liberdade e com os que sempre foram esquecidos.

É justamente esse cristianismo encarnado que incomoda. Incomoda setores da política, incomoda parte da sociedade e, ao que tudo indica, incomoda também setores da própria Igreja. Não por acaso, a decisão de silenciar o religioso nas redes provocou uma reação imediata. Segundo levantamento da Nexus (instituto brasileiro de pesquisa, análise de dados e inteligência em comunicação digital), cerca de um milhão de publicações foram feitas na rede social X em poucos dias. “Devolvam Padre Júlio” e “repressão nunca mais” não são slogans vazios. São gritos de uma sociedade que reconhece onde está o testemunho do Evangelho.

O próprio padre, com a calma de sempre, reafirmou sua obediência à Arquidiocese. Esse detalhe é importante. Não estamos diante de um rebelde inconsequente, mas de alguém que conhece a tradição da Igreja e escolhe permanecer nela, mesmo quando é ferido por decisões que soam desproporcionais e equivocadas. A obediência, aqui, não anula o direito à crítica. Pelo contrário, torna ainda mais necessária.

No meio desse cenário, surge também o ruído da política. Declarações do vice-prefeito de São Paulo, coronel Mello Araújo, tentando enquadrar Padre Júlio como alguém que “precisa seguir regras”, revelam algo ainda mais preocupante. Existe, no Brasil, uma parcela da direita, aquela fatia acéfala que já ficou bem conhecida, que insiste em atacar, deslegitimar e apagar o trabalho de quem atua ao lado dos pobres. São os mesmos setores que criminalizam a miséria, que transformam vítimas em culpados e que enxergam na compaixão uma ameaça contra a ordem.

Silenciar Padre Júlio Lancellotti nas redes não é um gesto neutro. Em tempos de comunicação digital, retirar a voz de alguém que fala por quem não tem voz é uma forma moderna de censura. Ainda mais quando essa voz foi decisiva para denunciar violência institucional, políticas higienistas e práticas desumanas contra a população que vive nas ruas. Não por acaso, o trabalho do padre resultou em uma lei federal que proíbe intervenções hostis contra essas pessoas. Isso não é pouca coisa.

A Igreja Católica tem uma longa tradição profética. Foi assim com Dom Hélder Câmara, com Dom Paulo Evaristo Arns, com tantos outros que entenderam que o Evangelho não se protege pelo silêncio, mas pelo compromisso com a vida. Quando a instituição tenta frear esse impulso, algo se perde. Não apenas para a Igreja, mas para a sociedade como um todo.

Aqueles que criticam e tentam acabar com o trabalho do padre esquecem até mesmo do Novo Testamento, ou simplesmente não se interessam em seguir os ensinamentos do principal livro do cristianismo. Está lá, na Epístola de Tiago, que "a fé sem obras é morta" (Tg 2,17).

Como jornalista e mestrando em Ciências da Religião, não consigo ver essa decisão como algo razoável ou pedagógico. Vejo como um erro histórico. Padre Júlio não precisa das redes para continuar sendo quem é. Mas a Igreja, ao afastar o religioso delas, perde a chance de mostrar que ainda é capaz de dialogar com o mundo real, com suas dores e contradições. E, num tempo em que tantos usam o nome de Deus para espalhar ódio, silenciar quem pratica o amor é, no mínimo, um enorme contrassenso.


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