Péricles e o Amigo da Onça redivivo
O cartunista pernambucano Péricles de Andrade Maranhão (Recife, 14 de agosto de 1924 – Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 1961) nasceu e viveu a primeira parte da sua vida na cidade do Recife, no bairro do Espinheiro.
Bom observador e de fácil comunicação, embora tímido, Péricles certamente ia ao Armazém Centenário, de secos e molhados, localizado no referido bairro, ora portando a “caderneta de anotações”, para fazer compras, ora para um bate-papo com o proprietário do estabelecimento, o português espirituoso Antônio da Costa Oliveira, e com os frequentadores do local, que também funcionava como um bar avulso, em um canto.
Tomei conhecimento desse fato há muito tempo, no mesmo estabelecimento, já funcionando como um autêntico bar, numa conversa com o amigo Paulo Costa, filho mais novo de Antônio da Costa Oliveira, de quem herdou o Centenário, em que falávamos, entre outras coisas, das qualidades da arte do cartunista recifense.
Paulo, um conhecedor da história e da geografia espinheirense, citado na crônica Evoé! Carnaval no Espinheiro, publicada nesta Folha de Pernambuco (20/02/2025), certo dia comentou que Péricles foi morar na Cidade Maravilhosa aos 18 anos e que, nas vindas ao Recife, já famoso, ele encontrava-se com o amigo Antônio.
Em outra ocasião, foi interessante saber que Péricles, antes da mudança, participava das peladas futebolísticas de fim de semana organizadas pelo seu Antônio (era o dono da bola e jogava na posição de goleiro), em um terreno deserto da Avenida João de Barros, próximo à passagem transversal da atual Avenida Agamenon Magalhães, onde hoje existe um viaduto. Há fortes indícios de que se conheceram nesse ambiente.
Acontece que ao pretenso craque de futebol o destino plantara outros caminhos ao seu futuro, por meio da pena e do pincel… Como de costume, nos pendores das artes, Péricles apresentou o dom para o desenho bem cedo. O talento para o humor gráfico foi visto na adolescência, quando era aluno do Colégio Marista e ao participar de um concurso jornalístico. Por isso, quando decidiu ir para a Capital Federal, levou consigo algumas referências e indicações.
Péricles revelou-se na revista semanal O Cruzeiro, a de maior prestígio e circulação nacional, indicadores mantidos por décadas. Foi a primeira revista de variedades do Brasil, lançada em 1928 pela organização Diários Associados, do poderoso empresário Assis Chateaubriand, o Willian Hearst tupiniquim.
Admitido na empresa jornalística em 1942, Péricles criou o cartum e o personagem de humor gráfico O Amigo da Onça em 1943, com estreia na edição de O Cruzeiro do dia 23 de outubro.
O sucesso do Amigo da Onça surpreendeu a todos. As primeiras edições com o novo quadro provocaram um aumento na procura da revista e um burburinho na sociedade. Desse modo, a gestão editorial agiu rápido, adotando medidas que atendessem, eficazmente, à demanda estimulada, e uma delas foi recolocar o novo cartum em uma posição mais estratégica no interior da revista, refletindo o valor conquistado pela arte e a atração dos leitores adquirentes por ela. Nesse contexto, o personagem tornou-se referência da revista em poucos anos. O picaresco cartum de Péricles persiste no imaginário popular até os dias de hoje.
A tiragem anual do O Cruzeiro cresceu acima do esperado, ano a ano, no entanto, os ganhos desse sucesso não vieram apenas da qualidade da edição, do conteúdo das reportagens, dos profissionais jornalistas e da divulgação do produto. A contribuição específica do cartunista Péricles, com o consagrado Amigo da Onça, também foi reconhecida como fundamental nessa alavancagem. A mídia adaptou-se à nova realidade do novo segmento.
Segundo Paulo Costa, a figura do Amigo da Onça foi inspirada no biotipo do seu pai. Os contemporâneos dele falavam isso, pelas semelhanças físicas e postura: irreverente, bom humor, irônico, estatura baixa, bigodinho, calvície lateral e olhos vivos.
Em cena, o personagem Amigo da Onça apresentava-se com traje summer (paletó e camisa na cor branca, gravata borboleta e calça e sapatos pretos), na qual poderia ser um garçom ou um sujeito elegante nas rodas sociais. Há quem diga, por quem conheceu o inspirado e o inspirador, que Péricles optou assim para não “invadir a intimidade dos trajes” do companheiro lusitano.
O Amigo da Onça era um daqueles tipos que não perdiam a oportunidade. Há estudos sobre seu perfil que o indicam como irônico, sarcástico, jocoso, descansado, gozador, embaraçoso (“casca de banana”), crítico social, oposto à hipocrisia e aos erros maldosos… tem a verdade como perspectiva, diante das personagens da contracena, em múltiplas situações. Ocupava as mais diversas funções, independentemente do status. Os diálogos são geniais, sempre atinentes ao tecido social, em que tudo existe, em um quixotesco humor inteligente, sutil e hilário.
Podemos fazer uma analogia do êxito do cartum O Amigo da Onça à classe de livros clássicos que ultrapassam os seus criadores, lhes controlam e assumem caminhos próprios, ao ponto de encobri-los: Dom Quixote (Miguel de Cervantes), Divina Comédia (Dante Alighieri), Cinderela e Branca de Neve (Irmãos Grimm), Sherlock Holmes (Arthur Doyle), Moby Dick (Herman Melville) etc.
Péricles de Andrade Maranhão, simplesmente Péricles, que teve entre seus amigos, pessoais e de trabalho, dois outros gênios do humor gráfico, Millôr Fernandes e Ziraldo (destaques a posteriori), está colocado entre os grandes cartunistas do Brasil. Conseguiu influenciar o dia a dia dos brasileiros por meio de um eterno personagem.
Com isso, não podemos deixar de ressaltar que a terra do frevo também destaca-se no humor gráfico. É um mágico berço de brilhantes cartunistas, chargistas e caricaturistas. Além de Péricles, temos, entre outros nomes: Carlos Estevão, Lailson de Holanda, Clériston de Andrade, Jarbas Domingos, Miguel Falcão, Ral, Samuca Andrade e Thiago Lucas... Reforça essa tendência a realização do IV Salão Internacional do Humor Gráfico de Pernambuco, programado para ocorrer na Caixa Cultural Recife, do dia 9 de dezembro de 2025 a 1 de fevereiro de 2026.
O principal motivo para a elaboração deste texto foi o ressurgimento do cartum O Amigo da Onça nas redes sociais, considerando a boa recordação e a admiração por ele. O reaparecimento é bem-vindo. O momento é rico para muitas criações. Em relação aos fatos correntes, o quixotesco personagem não perderia uma situação clara para fazer das suas, como, por exemplo, no recente julgamento ocorrido em uma alta corte, em defesa da democracia, em que determinado voto proferido condenando um réu à prisão, sentença considerada por muitos juristas e especialistas no assunto como “a culpa foi o mordomo”… Imaginemos o Amigo da Onça em ação (na imagem do cartum), trabalhando como assistente de plenário (“capinha”), ao escutar esse desfecho, sagazmente fala: Intimem Agatha Christie.
Caros leitores, não fiquem espantados… O Amigo da Onça apoiou as grandes manifestações acontecidas em todo o Brasil, no inesquecível dia 21/09/2025, contra as malvistas PEC da “Blindagem” e PL da Anistia, e em defesa da democracia e da soberania do país. Vestindo o tradicional summer, o da Onça esteve presente à manifestação realizada na cidade dos seus avós, o Recife; empunhava um cartaz com a seguinte mensagem: “Eu sou brasileiro / Não traio à Pátria / Não fujo à luta / Sou do povo altaneiro”.
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