Retrato da violência: o que saiu de um castro foi caiado pela última pá de cal
Tratar os graves problemas nacionais apenas com instrumentos guiados pelas ideologias políticas, parece-me ser algo revelador de uma certeza óbvia: de que as soluções são aparentes e inúteis. Cabe aqui um certo adágio popular, de onde se corrobora a velha tese, na qual se afirma que "tudo aquilo que não se resolve, costuma se repetir". Nessa linha de raciocínio, enfrentar um problema estrutural e diversificado como a segurança pública, tão somente por meio de intenções políticas, representa um erro crasso. Ainda mais quando os vieses ideológicos se colocam, notoriamente, na ordem do dia.
Uma semana após, neste mesmo espaço, manifestar minha incredulidade com a violência gratuita (que chamei 0800) e seu enfrentamento descomprometido com a realidade (que chamei de 171), volto ao tema, agora pela condição inevitável de reagir contra o horror, a barbaridade e, por que não enfatizar, a incompetência. Claro que respeito quem possa entender o triste episódio num modo contrário ao que vou expor, justo porque creio nas opiniões livres. No entanto, pelas minhas origens de formação acadêmica como economista (com incursões na pesquisa e na docência) e, agora, como um cronista atento aos nuances da política e às formas das desigualdades que marcam nossa sociedade, não consigo imprimir um ritmo que não seja buscar o senso de equilíbrio e a lógica humanista.
Conceitos morais, éticos, religiosos e outros assemelhados à parte, penso que não viemos ao mundo para sermos legitimados por atitudes de violência. Por maiores que sejam os instintos humanos, que até movam maldades reprimidas, a diferença está dada pela essência do racional, ou seja, pela capacidade nata de se fazer valer o conhecimento e a razão. O exercício da inteligência deriva dessa linhagem. No mais, a "violência pela violência", enquanto iniciativa de resposta para soluções complexas, mais do que praticar uma estupidez isolada, serve para corroborar uma incompetência genérica.
O combate posto em prática, naquilo que se definiu como a "mais letal operação contra o crime organizado", é um exemplo enodoado. Foi a consagração de um pragmatismo sutil de referendar uma "pena de morte", sem a amplitude de um respaldo constitucional, posto que foi um ato que, numa brutalidade sem precedentes, foi somente justificada pela essência ideológica que dá vigor a uma mera aposta política. De pronto, dirijo-me aqui ao artigo quinto da Constituição, apoiado no Código Penal Militar, que define os limites para justificativa de aceitação da pena de morte. Refiro-me ao objeto, tão somente pela ótica das mortes que moveram aquela operação, algo que, na amplitude maior, poderia estar colocado num estágio de maior tolerância. Assim, a partir do conceito fabricado pelo convívio com o neologismo definido como "narcoterrorismo", gerou-se uma nova motivação, que fez com que o quadro político reforçasse seu discurso sobre a existência prévia devum "estado de guerra", suficiente para consumar o ato em si e propor a revisão legislativa. É, nesse sentido, que a velha tolerância passaria a ser, devida e oficialmente, acobertada.
Bem, ordeno melhor as estratégias dos mentores da barbárie, para ser mais direto e incisivo na argumentação. Ou seja, pelo olhar da força pública aplicada, tento aqui expressar que o terror que aflige os brasileiros é ofício de traficantes criminosos, que merecem ser exterminados. E isso só pode ser possível com a execução de uma ação bélica invasiva, que vá além do convencionalismo imediatista do "tiro, porrada e bomba". Afinal, tornou-se necessário dar maior densidade e respaldo à operação, com a legitimação de uma "guerra civil urbana". E que, a partir daí, considerem-se os extermínios num regime de mudança da pena de morte, de uma condição informal para outra, mais formal. Essa é a dura realidade que se enxerga nas periferias, onde a segurança pública sai do plano 171 e assume a responsabilidade de garantir o artigo quinto e, com isso, agir para executar por executar.
Para começar minha argumentação, informo que a ironia do título deste artigo resume bem esse momento, no qual o embate político parece ditar os rumos de um problema com a dimensão de uma violência, que se mostra multifacetada e estrutural. Se assim a questão se apresenta, não é por uma mera ação pontual e equivocada que o enfrentamento foi digno de uma batalha vitoriosa. É bem longe disso. Afinal, ao se glorificar um combate letal contra um tipo de crime organizado, agora centrado na concepção de "narcotraficantes", não se trata de algo que possa ser encarado como simples ataque a uma quadrilha que ocupa favelas. O buraco é mais em baixo e muito maior do que se espera. Por isso, julgo que valha à pena esmiuçar melhor a ordem de grandeza desse problema.
Em primeiro plano, há informações que os criminosos têm hoje, no tráfico de drogas, menos de 20% do total dos seus "negócios" ilegais. Nesse sentido, por ser organizado e porque o interesse pela ocupação do território representa algo bem maior, é preciso que esse tema seja tratado como uma atividade econômica, que movimenta muitos mais recursos do que se pensa. De fato, no contexto daquela operação, comunidades foram atacadas como se os ambientes do crime fossem únicos, pontuais. No entanto, como costuma ser práxis, o alvo são as zonas de periferia, de flagrantes e profundas desigualdades, justamente, de onde há muito tempo o poder público se omitiu de suas responsabilidades.
Na realidade, é de conhecimento geral que, outras operações de combate, já mostraram que os verdadeiros líderes estão instalados em mansões ou escritórios, dignos de espaços que validam suas posturas aristocráticas e de ostentação. Quando não presos, os contatos com os liderados das favelas, só se efetivam por vistas panorâmicas ou pelo uso desmedido de celulares. Só por isso, a real consistência desse estrato social, já daria motivos para balizar o quanto a estratégia usada reproduziu um erro técnico, que não foi posto em consideração Isso porque o nexo causal da questão da segurança pública é apenas fazer valer o sentimento refletido pela ideologia.
Se assim é a percepção do problema, insistir na velha máxima de que "bandido bom é bandido morto" tanto não funciona, quanto o outro lado da moeda, que se traduz pela plenitude de enfrentar organizações criminosas com a declaração dos direitos humanos em poder das mãos. Num quadro tão complexo, entre tiros e flores, as técnicas que devem nortear as operações devem ser equilibradas, focadas na recuperação gradual dos territórios ocupados. E não, simplesmente, enfrentar traficantes e milicianos tendo em mente e mãos "metralhadoras giratórias". O plano pode ter sido eficiente. Também pode ter sido eficaz na missão de prender ou liquidar com bandidos. Mas, enquanto foco pontual foi absolutamente, sem efetividade, no encarar a extensão do problema. Portanto, isso só reforça o oportunismo ideológico, pelo momento político que se vive, em particular, no Brasil.
Dada essa ênfase, não há como concluir o entendimento de outro jeito, porque as circunstâncias políticas davam embasamento e sustentação à aposta naquele tipo de combate. Para isso, julgo como pertinentes alguns elementos, a saber: a) a percepção de que a sensação de insegurança contaminou parcela considerável da sociedade; b) que essa situação, se aida for melhor massificada, pode dar enorme respaldo à linha "militarizada" de combate; c) que o discurso apoiado no neologismo "narcoteaficantes", serve de pilar para avançar na ideia de que a sociedade está refém de "terroristas", para o qual o tratamento constitucional e judicial exige revisões que protejam esse modo de enfrentamento; d) que no bojo dessas revisões," são abertas as possibilidades de institucionalização da pena de morte, haja vista o sintoma de clima de guerra (algo já sinalizado pela própria Constituição); e) que mesmo diante de respostas conflitantes, a intuição de que a população reagiria a favor (como confirmaram dadas pesquisas), representa um fato que proporciona um ânimo eleitoral suficiente, para se manter o país no ritmo de uma polarização deletéria; e, f) que o desfecho disso foi, claramente, traduzido pela criação de uma associação pública, constituída por governadores adeptos dese modo de combate, que anunciado pelo Governador Caiado de Goiás (candidato assumido à disputa presidencial de 2026), selou toda operação como exemplar. E o curioso de cada passo dessa construção operacional é a tentativa de se consagrar a defesa da paz, sem a ocupação do Estado, de uma maneira inteligente e efetiva, como seria o racional.
Enfim, creio que seja o título deste texto um bom extrato de toda essa situação. Um fiel retrato da perpetuação da violência, que carimbadas por estratégias palacianas (nos gabinetes dos castros), colocam-se como um método caiado pelas pás de cal vistas como ações definitivas.
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