STF: a cadeira vaga e a dívida histórica com as mulheres
A recente aposentadoria antecipada do ministro Luís Roberto Barroso abriu mais do que uma vaga. Escancarou uma oportunidade decisiva para o país enfrentar sua dívida histórica com a igualdade de gênero nas instâncias máximas de decisão do Poder Judiciário. O próprio ministro Barroso, ao se despedir, deu um passo importante ao declarar que vê "com gosto" a possibilidade de uma mulher ser escolhida para a sua sucessão, defendendo a maior presença feminina nos tribunais superiores como regra geral.
A fala do ministro deve ser encarada não como um mero endosso, mas como um reconhecimento da assimetria que fragiliza a representatividade de nossa mais alta Corte. O Supremo Tribunal Federal (STF) é composto por onze cadeiras. Atualmente, apenas uma delas é ocupada por uma mulher, a ministra Cármen Lúcia. Em toda a história da Corte, que decide os rumos da nação, apenas três mulheres puderam sentar-se àquela bancada. Este número, irrisório frente a décadas de existência, não é um acidente, mas o reflexo direto de um sistema que, por muito tempo, ergueu barreiras silenciosas à ascensão feminina.
Para dimensionar a gravidade desse quadro, vale lembrar que o STF foi criado em 1828 como Supremo Tribunal de Justiça do Império, e somente em 2000 — quase dois séculos depois — recebeu sua primeira ministra, Ellen Gracie. Foram necessários mais onze anos para a chegada da segunda mulher, Rosa Weber, em 2011, e outros oito anos para a posse de Cármen Lúcia como a terceira, em 2006. Essa cronologia não revela apenas números: expõe um padrão sistemático de exclusão que atravessou gerações inteiras de juristas competentes.
A necessidade de a vaga ser ocupada por uma jurista não se baseia em uma "cota", mas sim no princípio da reparação histórica. Por décadas, as mulheres não apenas foram minorias no acesso à educação e aos espaços de decisão, como enfrentaram um ambiente institucional historicamente construído sob uma perspectiva masculina. Até 1932, as mulheres brasileiras sequer podiam votar. Até 1962, precisavam de autorização do marido para trabalhar. O próprio Código Civil de 1916 tratava a mulher casada como "relativamente incapaz". Essas não são curiosidades históricas distantes: são as fundações sobre as quais se ergueu o Judiciário que conhecemos.
A sub-representação feminina no Judiciário é o resultado da exclusão em cascata: da dificuldade de acesso aos concursos de alto nível à lentidão na progressão de carreira, culminando na ausência quase total nas instâncias máximas. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelam que, embora as mulheres representem 38% dos magistrados no Brasil, essa proporção despenca à medida que se sobe na hierarquia. Nos tribunais superiores, a presença feminina é residual. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), das 33 cadeiras, apenas seis são ocupadas por mulheres. No Tribunal Superior do Trabalho (TST), são apenas seis mulheres entre 27 ministros. A pirâmide da Justiça brasileira tem base larga e feminina, mas topo estreito e masculino.
É fundamental que o debate sobre ações afirmativas deixe de ser tabu e passe a ser visto como uma ferramenta de correção de injustiças estruturais. O próprio Judiciário, sob a gestão de Barroso no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), deu passos concretos nesse sentido, como a adoção da política de alternância de gênero nas listas de indicações para tribunais, visando equilibrar a balança. Essa política, implementada pela Resolução CNJ nº 255/2018, determina que as listas tríplices para preenchimento de vagas nos tribunais contenham ao menos um nome de cada gênero. Foi um avanço, mas insuficiente para alcançar o STF, onde a nomeação é prerrogativa exclusiva do Presidente da República, com aprovação do Senado.
Por serem as ações afirmativas mecanismos que buscam acelerar a isonomia, atuando como um "atalho" legal e temporário para reverter o déficit de representatividade acumulado por séculos de exclusão, elas são cruciais. No Judiciário, essas medidas reconhecem que a meritocracia, por si só, não é suficiente para desmontar as barreiras invisíveis que impediram juristas competentes de alcançar o topo. A meritocracia pressupõe condições equânimes de partida — o que nunca existiu para as mulheres no Brasil. Falar em mérito sem reconhecer o terreno desigual é perpetuar privilégios disfarçados de neutralidade.
A experiência internacional reforça esse entendimento. A Suprema Corte dos Estados Unidos, após 192 anos de existência exclusivamente masculina, nomeou sua primeira juíza em 1981. Hoje, quatro das nove cadeiras são ocupadas por mulheres. No Reino Unido, a primeira juíza da Suprema Corte foi nomeada apenas em 2004, mas atualmente três das doze cadeiras são femininas. Canadá, África do Sul e Índia avançaram significativamente na diversidade de seus tribunais superiores nas últimas décadas, reconhecendo que a legitimidade democrática das Cortes depende de sua capacidade de refletir a pluralidade da sociedade.
Ao longo do tempo, a falta de diversidade no STF impede que a sociedade brasileira — da qual as mulheres são maioria demográfica, com 51,1% da população segundo o IBGE — se veja verdadeiramente refletida e representada em sua Corte Suprema. Uma Justiça plural e diversa é fundamentalmente mais legítima e robusta. A diversidade de experiências de vida e de trajetórias profissionais enriquece o debate jurídico, aprimora a análise constitucional e fortalece a própria Democracia. Estudos acadêmicos demonstram que cortes diversas tendem a produzir decisões mais equilibradas, especialmente em temas sensíveis como direitos reprodutivos, violência de gênero, equidade salarial e políticas públicas de cuidado.
A ausência de perspectivas femininas nos julgamentos não é uma questão meramente simbólica. Tem consequências práticas. Quando o STF julga casos sobre aborto, licença-maternidade, violência doméstica ou assédio sexual, a presença de ministras traz à deliberação vivências e sensibilidades que homens, por mais bem-intencionados que sejam, dificilmente conseguem alcançar. Não se trata de essencialismo, mas de reconhecer que experiências sociais distintas geram leituras constitucionais mais completas.
O Brasil possui um vasto e brilhante contingente de juristas aptas ao cargo: desembargadoras, advogadas, procuradoras e professoras de notável saber jurídico e reputação ilibada, que preenchem com folga todos os requisitos constitucionais. Nomes como os das desembargadoras federais que integram tribunais regionais, das procuradoras da República que construíram carreiras sólidas no Ministério Público Federal, das advogadas que atuam nas causas mais complexas do país e das professoras de Direito Constitucional que formam gerações de juristas provam que não há escassez de qualificação. O que há é escassez de oportunidade.
A escolha de uma delas para suceder o ministro Barroso seria, portanto, um ato de igualdade de gênero e de inteligência institucional. Seria também uma mensagem clara de que o Brasil está disposto a romper com o passado excludente e a construir um Judiciário que dialoga com o século XXI. Um Judiciário que compreende que a excelência não tem gênero, mas que o acesso à excelência foi, durante tempo demais, monopolizado por um único gênero.
Esta é a chance de o Presidente da República, no uso de sua prerrogativa constitucional, não apenas preencher uma vaga, mas de realizar uma correção de rota que prestigia a equidade sem abrir mão da excelência. Indicar uma mulher para o STF é um passo concreto para estilhaçar o teto de vidro que ainda cerca os tribunais e para garantir que o Poder Judiciário espelhe, de forma mais fiel, a nação que ele serve.
A sociedade, e as mulheres em particular, aguardam que o Poder Executivo demonstre seu compromisso com a paridade e a justiça histórica, utilizando a ação afirmativa como o instrumento necessário para esta reparação. Não se trata de privilégio, mas de justiça. Não se trata de favor, mas de direito. Não se trata de novidade, mas de uma dívida que já deveria ter sido paga há muito tempo.
O momento é agora. A vaga está aberta. A história está sendo escrita. Que ela registre, finalmente, o compromisso do Brasil com a igualdade real, não apenas formal, entre homens e mulheres nos espaços de poder.
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