Viva a Conjuração Mineira! Viva o povo brasileiro da memória esquecida!
Em versos lapidados, escreveu o jurista Claudio Manuel da Costa, um dos intelectuais inconfidentes: “que da mesma saudade o infame ruído, vem as mortas espécies despertando.” Quem já sentiu, sabe que a saudade, de fato, pode produzir um ruído doloroso que tem o poder de reavivar lembranças esquecidas. Hoje é dia de lembrar de Tiradentes. E, apesar de a lembrança não produzir saudade daquele tempo em que o Brasil via todas as suas minas de ouro serem devassadas e remetidas à Portugal, vale a pena lembrar as razões da morte de Tiradentes, nosso herói “inconfidente”.
236 anos nos separam de 21 de abril 1789, quando a então Capitania de Minas Gerais fervilhava com ideias de independência - curiosamente, o mesmo ano em que eclodiu a Revolução Francesa, do outro lado do Atlântico. Lá, o povo clamava por liberdade, igualdade e o fim dos privilégios da nobreza. Aqui, o grito foi mais tímido: não era bem sobre direitos fundamentais, tampouco sobre fim da escravidão. O desejo era mais modesto - mas, ainda assim, corajoso: livrar-se da cobrança extorsiva da Coroa portuguesa, especialmente da famigerada “derrama” - espécie de dispositivo fiscal pelo qual a Coroa exigia o pagamento de impostos para garantir a arrecadação mínima de 100 arrobas de ouro por ano. Isso mesmo: a arrecadação não poderia ser menor que1500 quilos de ouro por ano, o que representaria 20%, ou 1/5 de tudo o que se extraía das minas. Esse tributo ficou tão marcado na história que gerou a expressão "quinto dos infernos", usada até hoje para se referir a cobranças abusivas. Mas, se no século XVIII a cobrança de 1/5 sobre a riqueza produzida era considerada intolerável e justificou uma revolta, como explicar a passividade diante de uma carga tributária que, atualmente, ultrapassa 1/3 do PIB?
É claro que, naquela época, os tributos pagos não retornavam em forma de orçamento para custeio de direitos sociais. Ao contrário, custeavam os luxos e a manutenção de uma monarquia suntuosa. Hoje, a bem da verdade, temos um orçamento público que, bem ou mal, é transparente, fruto de lei e executado por um governo eleito. Os tributos devem servir ao bem comum, financiar educação, saúde, segurança, proteção social. Mas será que têm cumprido esse papel de forma eficiente?
Se Tiradentes foi enforcado porque ousou se insurgir contra a opressão fiscal da monarquia colonizadora, nós, brasileiros filhos de Tiradentes, também temos o dever de fiscalizar e nos insurgir - agora contra um orçamento que não reflete nossas necessidades e contra uma carga tributária que, em vez de corrigir desigualdades, aprofundam-nas. Somos, todos nós, vítimas de um sistema regressivo, em que os pobres pagam proporcionalmente mais, especialmente por meio dos impostos sobre o consumo.
A história revela que muitas das grandes revoluções da humanidade tiveram como estopim o uso abusivo da tributação. Foi assim com a independência das colônias americanas, impulsionada pelo famoso lema “no taxation without representation”, denunciando a imposição de tributos sem voz política. Também foi assim com a Revolução Francesa, que pôs fim ao ancien régime e seus privilégios fiscais concentrados na nobreza e no clero.
Nos Estados Unidos, o episódio do Boston Tea Party marcou a revolta dos colonos contra os impostos britânicos e, nos panfletos, reclamava-se: “taxation without representation is tyranny”. Um clamor que atravessou séculos e que ainda ecoa - ou deveria ecoar por aqui.
Hoje, vivemos a reforma tributária que traz promessas importantes como simplificar tributos sobre o consumo, melhorar a transparência e oferecer maior previsibilidade, mas que não resolve o problema da regressividade. Por isso, se quisermos justiça tributária de verdade, será preciso ir além. O brasileiro precisa acordar e exigir não um orçamento com menos direitos, mas um orçamento com menos privilégios - e uma carga tributária melhor distribuída.
Lembrar Tiradentes é um chamado à indignação. É um alerta para que não nos acostumemos com o peso de um sistema que cobra muito de quem tem pouco. O herói da Conjuração foi enforcado e esquartejado em praça pública. Nós, por outro lado, corremos o risco de morrer em silêncio. De sermos engolidos pelo comodismo, e pela letargia.
E como já alertava Francisco de Goya, em sua célebre obra: “O sono da razão produz monstros” - é quando o povo adormece que nascem, crescem e se desenvolvem as piores distorções. Precisamos acordar e entender que discutir orçamento público e tributação não é coisa de especialista, de economista, de doutor. É coisa de cidadão. Afinal, é o dinheiro e a vida de todos que está em jogo.
Usemos, portanto, o dia da celebração nacional para reavivarmos nossa memória e as razões das batalhas, e para que não morra em nós o ruído da indignação.
Viva a Conjuração Mineira!
Viva Tiradentes!
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*Procuradora Federal, Doutora e Professora de Direito Financeiro e Tributário e Diretora da OAB/PE
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