Sáb, 06 de Dezembro

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AMEAÇAS GLOBAIS

Queda de Assad na Síria abre caminho para retorno do Estado Islâmico, conclui relatório dos EUA

Especialistas alertam para risco de o grupo libertar milhares de combatentes experientes que estão detidos em prisões guardadas por forças curdas

Regime de Bashar al Assad durou 24 anosRegime de Bashar al Assad durou 24 anos - Foto: Louai Beshara/AFP

O Estado Islâmico (EI) tem demonstrado um vigor renovado na Síria, atraindo novos combatentes e registrando um aumento no número de ataques no ano passado, de acordo com as Nações Unidas e autoridades dos Estados Unidos. O cenário eleva o risco de instabilidade em um país já volátil após a queda, em dezembro, do regime de Bashar al-Assad.

Embora o grupo esteja longe de ter a força que registrava há uma década, quando controlava o leste da Síria e uma grande parte do norte do Iraque, especialistas alertam que existe o risco de o EI encontrar uma maneira de libertar milhares de combatentes experientes que estão detidos em prisões guardadas por forças curdas apoiadas pelos EUA.

O ressurgimento sério do Estado Islâmico comprometeria um raro momento em que a Síria parece ter a chance de seguir adiante após anos de uma ditadura brutal. Mas também poderia ter efeitos mais amplos, espalhando instabilidade por todo o Oriente Médio. No passado, o grupo extremista já usou a Síria como base para planejar ataques a países vizinhos e até mesmo à Europa. Hoje, entre 9 mil e 10 mil combatentes do EI, além de cerca de 40 mil familiares, estão detidos no nordeste do país. Sua fuga não apenas aumentaria o número de integrantes do grupo, como também representaria uma vitória propagandística.

— A joia da coroa para o Estado Islâmico ainda são as prisões e os campos — disse Colin Clarke, chefe de pesquisa do Soufan Group, uma empresa global de inteligência e segurança. — É lá que estão os combatentes experientes e endurecidos pela batalha. Além da força que eles acrescentariam ao grupo, se essas prisões forem abertas, o valor de propaganda ajudaria nos esforços de recrutamento do EI por meses.

Em março, oficiais de Inteligência dos EUA apresentaram ao Congresso americano sua avaliação anual das ameaças globais, concluindo que o Estado Islâmico tentaria explorar a queda do governo Assad para libertar prisioneiros e restaurar sua capacidade de planejar e executar ataques. Os Estados Unidos anunciaram, no final do ano passado, que haviam praticamente dobrado o número de tropas em solo na Síria, totalizando cerca de 2 mil soldados. Os diversos ataques a redutos do EI no deserto sírio nos últimos meses parecem ter reduzido a ameaça imediata.

Mas o presidente Donald Trump tem demonstrado grande ceticismo quanto à permanência das tropas americanas no país, e uma série de outros acontecimentos na Síria preocupa especialistas que acreditam que, juntos, esses fatores podem facilitar o reagrupamento do EI.

Washington tem esperanças de que o novo governo sírio, liderado por uma antiga afiliada da al-Qaeda, o Hayat Tahrir al-Sham (HTS), se torne um parceiro no combate ao ressurgente EI. Os sinais iniciais foram positivos, com o grupo agindo com base em informações fornecidas pelos EUA para frustrar oito planos de ataque do Estado Islâmico em Damasco, segundo dois altos oficiais militares americanos que falaram sob condição de anonimato para discutir operações sensíveis.

No entanto, a violência sectária registrada no mês passado — que resultou na morte de centenas de civis — evidenciou a falta de controle do governo sobre algumas forças nominalmente sob seu comando. Ainda não está claro qual será sua capacidade real de combater o grupo.

Influência prolongada

O Estado Islâmico, grupo muçulmano sunita, tem origem na al-Qaeda no Iraque, onde foi derrotado por milícias locais e tropas americanas. Seus combatentes se rebatizaram como EI e aproveitaram o caos da guerra civil na Síria para tomar vastas áreas de território e retornar ao Iraque.

O grupo ganhou notoriedade por sequestros, escravidão sexual e execuções públicas, além de ter orquestrado ou inspirado uma série de ataques terroristas na Europa. Ele havia sido amplamente derrotado há mais de cinco anos por uma coalizão entre as Forças Democráticas Sírias — lideradas pelos curdos no nordeste do país — e tropas dos Estados Unidos. Mas, no início de 2024, o regime de Assad estava cada vez mais na defensiva; seus aliados iranianos e russos estavam sobrecarregados com conflitos em outras regiões; e os curdos da Síria foram forçados a redirecionar tropas para enfrentar ataques da Turquia.

Mesmo sem controlar grande território, o Estado Islâmico continua disseminando sua ideologia radical por meio de células clandestinas, filiais regionais fora da Síria e pela internet. No ano passado, o grupo foi responsável por ataques de grande escala no Irã, na Rússia e no Paquistão. Na Síria, segundo um oficial do Departamento de Defesa americano, o grupo reivindicou 294 ataques em 2024, mais que o dobro de 2023, com 121. A comissão de monitoramento do Estado Islâmico da ONU estimou cerca de 400 ataques, enquanto observadores de direitos humanos na Síria disseram que o número era ainda maior.

Segundo grupos de direitos humanos e oficiais militares dos Estados Unidos, os ataques neste ano parecem ter diminuído — em parte devido à recente campanha de bombardeios dos EUA contra combatentes do Estado Islâmico —, mas ainda é relativamente cedo para dizer, e a situação permanece extremamente instável. Aaron Zelin, membro do Washington Institute que acompanha há mais de 15 anos as atividades e a propaganda de grupos islâmicos, afirmou que os principais desafios enfrentados pelo novo governo são os remanescentes do regime Assad e as incursões da Turquia na Síria, além da ameaça do EI.

— Um único grande ataque em Damasco contra estrangeiros ou expatriados e todos vão mudar a forma como veem a situação, por isso precisamos ser cautelosos — disse ele.

Vácuo de poder

As preocupações com uma possível fuga em massa de detentos do EI aumentaram com a violência constante no nordeste do país. Os centros de detenção na região são guardados pelas Forças Democráticas Sírias, que também protegem os campos vizinhos onde vivem familiares de membros do Estado Islâmico. Mas essas forças têm sido dispersadas por ataques de milícias apoiadas pela Turquia, onde os combatentes curdos são vistos como o braço sírio dos separatistas, que travam uma luta de 40 anos contra o governo turco. Para a Turquia, eles são terroristas.

Relembre: Disfarçada, jornalista se alista no Estado Islâmico

As prisões já se mostraram motivo de preocupação. Em 2022, cerca de 400 presos ligados ao Estado Islâmico escaparam durante um ataque do grupo a uma prisão na cidade de Hasaka. Na ocasião, as Forças Especiais americanas ajudaram os combatentes curdos a retomarem o controle da situação. Desde então, a inteligência dos Estados Unidos sobre possíveis fugas ajudou as Forças Democráticas Sírias a frustrar outras tentativas antes que ocorressem, segundo um dos altos oficiais americanos.

Em al-Hol, o maior campo onde mulheres e crianças do EI estão detidas há anos, o grupo extremista tem testado os limites. Um relatório recente da ONU afirmou que o caos provocado pela queda de Assad permitiu que alguns combatentes do EI escapassem do local, embora não esteja claro quantos. Para o analista iraquiano Kawa Hassan, se os curdos sírios forem enfraquecidos, não há dúvida de que “isso criará um vácuo” de poder — ocasião que certamente fortalecerá o Estado Islâmico.

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