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Um Ponto de vista do Marco Zero

Breve é a vida, longa é a arte. Aonde vamos?

E arte é vida. Arte de viver. Conviver. Lidar. Tratar. No gestual da cortesia que é um balé social

E arte é vida. Arte de viver. Conviver. Lidar. Tratar. No gestual da cortesia que é um balé socialE arte é vida. Arte de viver. Conviver. Lidar. Tratar. No gestual da cortesia que é um balé social - Josep Lago / AFP

Andaluzia. Foi lá um dos primeiros pontos de encontro entre Oriente e Ocidente. Os cartagineses a transformaram em rica província. Depois, os romanos criaram lá uma florescente colônia. No século VIII, inicia-se a conquista árabe. Com o califado de Córdoba. Seguindo-se os reinos mouros. Entre os quais, o de Granada. Somente reconquistada pelos cristãos após dois séculos.

A partir daí, o pensamento político ocidental foi amadurecendo. Cada período da história tem sua referência. Hobbes (1588-1679) descortinou a noção de sociedade civil. E o conceito de Leviatã: o papel do Estado como gestor absoluto. Montesquieu (1689-1755) formulou a genial tripartição do poder entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Por sua vez, Rousseau (1712-1778) defendeu que tudo está radicalmente ligado à política.

A teoria política foi se justapondo à gestão governamental. Os Poderes foram se especializando. E assumindo suas configurações específicas. Evoluindo na formatação republicana. E no desenho federativo. Com eles, vem o aperfeiçoamento do binômio planejamento / orçamento. Pois não é o orçamento o ajuste quantitativo (e até qualitativo) do planejado? Só no Brasil, reinventou-se o orçamento secreto. Oito séculos depois que os barões feudais da Inglaterra obrigaram o rei a declarar o destino do produto dos impostos.

O tempo avançava. As ideias políticas também. No século XX, cresce o valor da questão social. Principalmente, na França. Na Sorbonne. Com o ensino da pedagogia e das ciências da educação. E a participação de Le Play, promotor do catolicismo social. No estudo das famílias operárias. Na segunda metade do século XX, surge a análise de Albert Hirschman. Com foco nas paixões e interesses. Numa sociedade em transformação acelerada. Intensidade. Rapidez.

Afetos e paixões se deslocam. Redes sociais. Muda a comunicação. Agora, o político é partilhado com o dinheiro, as fontes de financiamento. E a tecnologia, as big techs, os algoritmos. É o momento em que o real se desmaterializa. Digitaliza-se. A temporalidade atrelada às máquinas. O mundo urgente. O pensamento se extravia. A velocidade é uma conquista. A lentidão é uma perda. A cidade é um não lugar? Não. Um altar sacrificial? Não. Mas precisa ser remodelada. Ganhar uma alma.

No final do século XX, veio o extremismo religioso. O fundamentalismo. O poder dos aiatolás. Gerando confrontos. Rupturas. E a expansão do sincretismo religioso. Nem sempre compreendido. A religião, manipulada e laicizada, não consegue subtrair-se às pressões. Suas confrontações parecem ser cada vez menos controvérsias espirituais. E ser cada vez mais lutas pelo poder.

E, no entanto, a vida é arte. A música existe. Alguns concertos da Filarmônica de Berlim são realizados em praça pública. Rostropovich celebrou com seu cello a primavera de Gorbachev na praça de Moscou. Na urbe. Por sua vez, a poesia é um fio condutor que vem de Dante. Recebe a modernidade e o flanêur de Baudelaire. Certifica a luz do sol mexicano de Diego Rivera na pena de Octavio Paz. Traz a tessitura do cotidiano incendiado de beleza no poema de Carlos Drummond de Andrade.

E a pintura resiste. Como memória e criatividade. Desde o olhar plácido de Vermeer. Até a visão de brilhantes azulejos na genialidade cubista de Picasso. Passando pela exigência de sensatez de O Grito, do norueguês Munch. E testemunhando o talento negro de Jean-Michel Basquiat. A historiadora Barbara Tuchman escreveu um livro sobre a Marcha da Insensatez. Esta é uma nuvem que parece abater-se sobre o século XXI.

E arte é vida. Arte de viver. Conviver. Lidar. Tratar. No gestual da cortesia que é um balé social. E natural. Pessoas que conhecem, na proximidade do outro, um modo de partilhar. Como diziam os gregos, amizade é meio de coesão coletiva. No início do ano, fui a Goiana. Participar de reunião do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico. Como cheguei cedo, me dirigi, a pé, até padaria próxima. Durante o trajeto, encontrei com três pessoas da cidade. Que iam aos seus afazeres. Todos eles me cumprimentaram: Bom dia, bom dia, bom dia. Como ato normal de circunstância urbana. Próprio da vida da histórica cidade da Mata Norte.

O bom dia dos goianenses ficou nos meus ouvidos. Como um recado. E, ao mesmo tempo, como emblema. De estilo de vida. De maneira de ser. Mas não me pareceu um bom dia vazio. Havia nas palavras um conteúdo claro: nas palavras havia um olhar. Olhar de quem era capaz de enxergar o outro. E este é o ponto. Vivemos e passamos pelos outros sem enxergar o outro. Não há bom dia. Porque não há o outro. A vida vale. E a arte também.

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