Conservadorismo latino-americano de 1960 é evidenciado em “Ninguém Nos Viu Partir”
Série mexicana transforma drama familiar em retrato de poder, religião e silêncio institucional
Em “Ninguém Nos Viu Partir”, a dor vem da família, mas principalmente do silêncio. A nova minissérie mexicana da Netflix, dirigida por Lucía e Nicolás Puenzo ao lado de Samuel Kishi, adapta o livro autobiográfico de Tamara Trottner com uma precisão emocional bem satisfatória.
Ambientada na cidade do México dos anos 1960, a trama acompanha Valeria Goldberg (Tessa Ía), uma mulher que descobre que seu marido, Leo Saltzman (Emiliano Zurita), sequestrou os próprios filhos após o fim do casamento. O que poderia ser um drama doméstico se torna uma história sobre como o poder, o dinheiro e o gênero moldam a forma como a sociedade decide quem é vítima e quem é culpado.
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O peso do silêncio
Há um refinamento inquietante no modo como a série conduz sua narrativa: as casas amplas, os jantares elegantes e o peso do sobrenome contrastam com a solidão devastadora de uma mãe desacreditada.
A câmera de Puenzo não busca o caricato, mas o enquadramento da opressão, que se torna quase física. “Ninguém Nos Viu Partir” não quer resolver um crime, quer expor um sistema. Cada episódio funciona como uma lembrança reprimida, uma parte da memória e da dor que se recusa a cicatrizar.
Ponto alto: Roteiro e atuações
O roteiro se desenvolve a partir de um contexto latino-americano de conservadorismo e poder econômico, onde o controle masculino é sustentado pela religião e, principalmente, pela imagem pública. A diferença é que, aqui, o horror não está na brutalidade explícita, mas na burocracia que legitima o abuso e nas conversas em tom baixo.
Tessa Ía entrega uma atuação contida e cortante, que traduz o desespero de quem precisa lutar para existir socialmente antes mesmo de recuperar os filhos. Zurita, por outro lado, constrói um Leo ambíguo, quase patético, um homem que usa o amor e a mágoa como justificativa para a destruição. É um duelo de presenças, mas também de narrativas: quem tem o direito de contar a própria história?
No fim, “Ninguém Nos Viu Partir” é menos sobre o sequestro e mais sobre o que ele representa. A minissérie expõe uma ferida de mulheres silenciadas por estruturas que confundem autoridade com amor e que seguem, até hoje, tentando ser ouvidas em meio ao ruído do poder.
*Fernando Martins é jornalista e grande entusiasta de produções televisivas. Criador do Uma Série de Coisas, escreve semanalmente neste espaço. Instagram: @umaseriedecoisas.
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