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Uma Série de Coisas

O horror de Ed Gein e o esgotamento do olhar de Ryan Murphy

Com Ed Gein, o showrunner cria uma temporada esteticamente potente e vazia de narrativa

Charlie Hunnam, de "Sons Of Anarchy", protagoniza nova série de Ryan MurphyCharlie Hunnam, de "Sons Of Anarchy", protagoniza nova série de Ryan Murphy - Divulgação/Netflix

Há algo de quase ritualístico na forma como Ryan Murphy e Ian Brennan revisitam o crime. Desde “Dahmer”, a antologia “Monstros” transformou o abismo moral de assassinos reais em espelhos das obsessões americanas (fama, trauma e voyeurismo). Em “Monstro: A História de Ed Gein”, terceira temporada da série, essa ideia retorna mais ambiciosa e mais caótica. 

A promessa era mergulhar na mente do homem que inspirou “Psicose” (1960), “O Massacre da Serra Elétrica” (1987) e “O Silêncio dos Inocentes” (1991). O resultado, porém, é uma gangorra irregular entre o fascínio pelo mito e a desorganização em retratar o homem por trás dele.

Ambientada na Wisconsin dos anos 1950, a série encontra seu terror mais genuíno no cenário: o isolamento, a neve que cobre cadáveres, o silêncio opressor de uma fazenda que parece existir fora do tempo. É nesse espaço claustrofóbico que Eddie Gein (Charlie Hunnam) habita, um homem consumido pela devoção à mãe e pelos próprios fantasmas. 

Murphy e Brennan constroem um horror que é, ao mesmo tempo, sobre o ato criminoso e o vazio que o antecede. Só que o roteiro, tão preocupado em conectar símbolos e referências, acaba perdendo o pulso psicológico que sustentaria esse mergulho.

Crime que inspirou o cinema

Há, contudo, um gesto inteligente ao mostrar como o caso Gein se tornou a gênese de todo um imaginário do horror moderno. A série reflete sobre o quanto “Psicose” (1960), “O Massacre da Serra Elétrica” (1987) e “O Silêncio dos Inocentes” (1991), três grandes pilares do gênero, não nasceram apenas da ficção, mas de um país obcecado pela violência doméstica e pelo medo da decadência moral

Murphy parece fascinado por esse espelhamento, e usa a própria estética da série para trazer um novo tom à história. A mise-en-scène meticulosa de Hitchcock, a brutalidade rural de Tobe Hooper, o terror psicológico de Jonathan Demme. O problema é que, ao prestar tantas homenagens, “Monstro” acaba se tornando prisioneira delas e menos atento a retratar o que é real e ficção, ou até de determinar o que seja.

Atuações e fotografia como ponto alto

Charlie Hunnam entrega o que pode ser seu melhor papel da carreira. O ator interpreta um Gein contido, desconcertante, que parece sempre à beira da dissolução. É uma atuação que entende o personagem como um sintoma, não como um vilão. Laurie Metcalf, como Augusta Gein, rouba as cenas em que aparece. Sua presença é o verdadeiro terror da temporada, a força que paira sobre tudo mesmo depois da morte. 

Ainda assim, as interpretações são vítimas da fragmentação narrativa: a série alterna entre a biografia, a metalinguagem e a sátira, sem encontrar um eixo emocional sólido.

Visualmente, o trabalho é irretocável. A fotografia fria e dessaturada, o figurino rural que parece mofado pelo tempo, e a direção de arte consegue transformar cada cômodo da casa dos Gein em um desconforto constante. Mas é justamente essa competência técnica que torna o vazio dramático ainda mais evidente. Quando o horror se resume à reconstituição estética, o medo se torna bonito e, portanto, inofensivo.

Crime e cultura pop

Nas comparações inevitáveis com as temporadas anteriores, “Ed Gein” ocupa um lugar inferior entre o impacto brutal de “Dahmer” e a irregularidade melodramática de “Os Irmãos Menendez”. Se o primeiro conquista pela imersão psicológica e o segundo escorrega no tom novelesco, este terceiro capítulo revela um criador autoconsciente, mas também indeciso. 

Há, nos novos episódios, o desejo de discutir como o crime se transforma em cultura pop e como o horror se institucionaliza como forma de consumo, mas falta o passo de questionar o próprio olhar que transforma assassinos em ícones. “Monstro: A História de Ed Gein” é, no fim, um espelho das ambições e das limitações de Ryan Murphy.

*Fernando Martins é jornalista e grande entusiasta de produções televisivas. Criador do Uma Série de Coisas, escreve semanalmente neste espaço. Instagram: @umaseriedecoisas.

*A Folha de Pernambuco não se responsabiliza pelo conteúdo das colunas.

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