A dura vida de Marcelo Mimoso, cantor com voz de Gonzaga que vive entre o palco e o volante do táxi
Artista carioca, filho do sanfoneiro paraibano Fidelis do Acordeon, anima o São João com vozeirão e carisma, mas trava uma luta para sobreviver da arte
É sábado à noite e, na entrada do Arraiá do Museu do Pontal, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro, uma amiga diz à outra que podem avançar com calma rumo à multidão, porque o show ainda não começou.
“É um DJ tocando Luiz Gonzaga”, avisa. À medida em que vão se aproximando do palco, elas percebem que estão redondamente enganadas. O vozeirão que ecoa por uma das festas juninas mais lindas e democráticas da cidade, com entrada 0800, não só é performance acontecendo na hora, como o dono do microfone é um artista vivo, muito vivo e bem disposto: Marcelo Mimoso.
A cena resume a sensação diante do timbre do cantor “parioca”, mistura de paraibano com carioca, de 44 anos: se fechar o olho, parece Gonzagão cantando.
De chapéu de cangaceiro e camisa quadriculada por baixo do macacão, ele também é dono de presença forte em cena. Tanto que seu carisma faz Heitor, de dois anos, responder à altura lá do meio do público.
Empoleirado na cacunda da mãe, o garoto toca um minitriângulo vidrado no que está acontecendo no palco. Ao avistá-lo, Mimoso o convida para acompanhá-lo em “Pedras que cantam” — aquela música que diz “quem é rico mora na praia/ mas quem trabalha não tem onde morar”, de Dominguinhos e Fausto Nilo. Pronto: veio aí o momento mais fofo da noite, devidamente registrado e postado em vários perfis pelas redes sociais.
— Marcelo Mimoso exemplifica um lindo caso de como as heranças culturais são vibrantes e podem fecundar novos talentos. De como a tradição pode gerar renovação. É filho de sanfoneiro, que emigrou da Paraíba para o Rio de Janeiro, e trouxe consigo toda uma bagagem cultural. E soube transmitir. Isso interessa muito à gente, aqui no Museu do Pontal — diz a diretora da instituição, Angela Mascelani.
Ela se refere à Fidelis do Acordeon, sanfoneiro paraibano que envolveu o filho carioca na música e na cultura regional nordestina desde sempre. Mais novo dos três rebentos do veterano — nascido no município de Remígio, a 140 quilômetros de João Pessoa e que veio tentar a vida como mecânico no Rio, em 1970 —, o menino Marcelo cresceu carregando a sanfona do pai pelos forrós da vida Brasil afora. Conviveu de perto também com folclórico Manhoso, famoso por suas canções de duplo sentindo e a quem o pai acompanhou por 15 anos. Foi Manhoso quem deu guarida à Marcelo, que perdeu a mãe para o câncer aos seis anos e foi morar com parceiro de Fidélis, em Maricá. Assim, Manhoso tornou-se padrinho de Mimoso.
O apelido que hoje é o charme de seu nome artístico, aliás, veio à revelia, lá pelos 14 anos:
— Meu irmão lutava jiu-jitsu, e um dia me levou para a aula dele. Aí, o professor disse bem naquela coisa de machão: “Dá um tapa na cara do tio”. Falei: “Eu não”. E ele: “É um mimoso mesmo” — recorda. — Meu irmão começou a me zoar, e é aquela coisa, né, quanto mais chateado a gente fica com apelido, mais ele pega — diverte-se.
O encantamento pelo meio artístico veio quando ele viu o mesmo irmão atuar como dublê na novela “Xica da Silva”.
— Ali, cheguei a conclusão de que queria trabalhar com arte. E percebi que meu sobrenome original, Diniz, poderia ser achado em cada esquina. Resolvi, então, assumir o Mimoso.
À época, com 20 anos, um convite do pai foi decisivo para encontrar o caminho que lhe faria brilhar no futuro. Num forró no Clube Costa Brava, se deparou com a juventude da sua geração “comendo forró” em plena onda forrozeira da virada do milênio, capitaneada pelo grupo Falamansa.
Era um cenário bem diferente do que estava acostumado, na Feira de São Cristóvão, onde ia desde menino. Contagiado, Mimoso mergulhou de vez naquele universo.
Foi roadie do Trio Pé-de-Serra, passou a triangulista do Balanço Bom e a líder da banda Os Cabras. Depois de adquirir experiência, acabou chamado novamente ao Balanço Bom para liderar a banda. Foi quando se aprofundou na obra de Dominguinhos, por influência do sanfoneiro Cezinha. Atuando na banda Forró do Mercado, com o acordeonista Kiko Horta, abriu o leque musical, até então circunscrito ao mundo dos trios.
Foi então que recebeu o convite do diretor teatral João Falcão para assumir um papel de ainda mais responsabilidade: o de Luiz Gonzaga no teatro, no musical “Gonzagão — a Lenda”, com o qual percorreu o Brasil por quatro anos, passando por Bogotá, na Colômbia, onde apresentou cinco sessões.
Um oásis chamado Instituto Sacatar: residência artística mais antiga do Brasil, na Ilha de Itaparica, já recebeu 500 nomes de 70 países
Se o vozeirão é o seu carro chefe, a sanfona é hobby. Só aprendeu a dedilhar o instrumento, em 2004, quando foi atropelado:
— Não podia andar, ficava agoniado na cama, pegava a sanfona e ficava catando milho. Mas estou pensando em estudar, nunca é tarde, né?
A primeira e única composição que leva sua caneta, em parceria com o maestro, pianista e acordeonista Marcelo Caldi, veio de um desabafo.
Era 2016, e ele rodava pelo Nordeste fazendo show, quando desembarcou na terra do pai. Percebendo a invasão do sertanejo no lugar do tradicional forró em redutos do São João como Caruaru e Campina Grande, escreveu um discurso para dizer na hora. O texto acabou virando o baião “Coração nordestino”.
— Queria falar que forró não é Wesley Safadão, nem piseiro. As pessoas não sabem porque o nicho do forró é pequeno em comparação com o povão que esses caras atingem.
No volante de um táxi
Olhar para Mimoso no palco faz pensar em como pode um talento desses precisar dirigir um táxi para sobreviver? Ok., ter outro ganha pão para dar conta de pagar boletos sempre foi a realidade de muitos artistas brasileiros. Mas nem por isso, a gente normaliza... Durante sete anos, Mimoso trabalhou como Uber, aplicativo em que chegou a ostentar a nota 5.0. Tem dois anos que ele investiu na compra de um amarelinho. Roda atrás do volante por Copacabana e Lapa, onde bate ponto no bar da esquina da Rua do Lavradio com Mem de Sá.
A dificuldade em conseguir viver apenas do que mais ama, a música, é, muitas vezes, motivo para pensar em desistir.
— Passo dias na estrada, chego cansado e com R$ 200 no bolso. Aí penso no que perdi se tivesse rodando de táxi... ganharia o triplo ou quadruplo disso. Então, me dá vontade de parar, desacredito, vem a depressão. Mas toda vez que vem esse pensamento, acontece algo. Quando penso em desistir, a música te pega pelo pé.
Os amigos também. Caso de Kiko Horta:
—Ano passado, ele não queria mais cantar, e eu falei: “Não vai parar coisa nenhuma”. Chamei para trabalhos com o Forró do Kiko. Mimoso é um dos maiores cantores de forró do Brasil, criado na encruzilhada do Sudeste com o Nordeste. Quando ouvimos seu cantar, ressoam no coração os versos de “faz três noites que pro Norte relampeia” (“A volta da asa branca”, de Luiz Gonzaga). Ativa um imenso imaginário relacionado à música do Nordeste. Vem o Rei do Baião, Dominguinhos e Anastácia, Jackson do Pandeiro, Marinês e tantos mestres. Além disso, é um excelente ator. Aprendo sempre ouvindo seu jeito de cantar e sua voz tão marcante — conta o acordeonista. — Digo a ele: “Calma, Mimoso, uma pessoa com o seu dom vai morrer por dentro se parar. Não pode se enfiar num Uber e achar que vai levar a vida desse jeito. Vamos correr atrás das possibilidades”.
É o que ele segue teimando em fazer. Na próxima sexta-feira (18), canta no Beco das Sardinhas, no Largo de Santa Rita, no Centro, como convidado especial do Forró da Lila.

