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"Coisa de rico" revela vida secreta dos endinheirados e vira fenômeno editorial

Livro do antropólogo Michel Alcoforado já vendeu 10 mil exemplares em um mês

Michel Alcoforado Michel Alcoforado  - Foto: Divulgação/ Renato Parada

Com mais de dez mil exemplares vendidos em um mês, um estudo sobre a vida dos abastados brasileiros é o fenômeno editorial do momento. Na origem do sucesso de “Coisa de rico” (Todavia) está a pesquisa inusitada de seu autor, Michel Alcoforado. O carioca de 39 anos, que já era conhecido pela mídia e nos altos salões como um “antropólogo do luxo”, transformou sua tese de doutorado num saboroso relato etnográfico sobre a elite do país.

Alcoforado tomou muito chá de cadeira — ou melhor, de sofá de linho — até ser recebido pelo 0,01% mais abastado da população. Contando inicialmente com o modesto salário de pesquisador do CNPq, teve que inventar uma secretária fantasma para ser levado a sério pelos ricaços. Outro obstáculo era a reticência dos entrevistados em falar sobre seus privilégios. Mesmo a mulher capaz de gastar €15 mil num único perfume tinha dificuldade em se ver como rica.

O livro resgata dados de uma pesquisa do Datafolha de 2022, que mostra que 29% dos brasileiros acreditam fazer parte das camadas médias ou médias altas e simplesmente 0% se diz rico.

— No Brasil, você sempre será o pobre de alguém — diz Alcoforado, em entrevista por videoconferência. — Até os superendinheirados olham para cima e se comparam a quem tem mais. Não existe um lugar final de pertencimento. O limite é você que coloca.

 

Flûtes de cristal
A grande batalha das elites brasileiras, aponta o autor em seu livro, “não é pela construção de um império, é pela conquista de coisas de rico”. Por “coisas de rico”, ele entende não apenas os produtos de luxo (que já são abundantes), mas também certos códigos silenciosos que funcionam como catapultas de distinção. Atravessar os muros antes dos demais é o tema central da vida de seus personagens.

O autor transitou por iates e mansões à beira-mar, bebeu champanhe em flûtes de cristal, seguiu ricaços nos seus destinos internacionais e até deu aula para madames com sede de “capital cultural” — e do espumante servido após o curso. Presenciou um bilionário desembolsar R$ 90 mil por um terno de emergência, depois de manchar o seu às vésperas de uma reunião importante. Ouviu histórias que remetem aos tempos da Casa Grande, como a da mulher que mantinha empregadas de prontidão dentro do banheiro apenas para secá-la após o banho.

No fim, cada “coisa de rico” acabava rapidamente superada pela seguinte. “Agora quero ver se você entende de rico e de luxo mesmo”, disse um bilionário que pretendia apresentar o autor a um amigo ainda mais abastado. E concluiu com um “se prepara pra ver gente rica” — como se ele não o fosse.

Mesmo conhecendo as desigualdades do país, e mesmo sendo ele mesmo o produto de uma classe média alta confortável, Alcoforado se surpreendeu com o que viu. O brasileiro, no fim das contas, não tem ideia do luxo em que vive os seus super-ricos.

— As elites protegem seus hábitos — diz Alcoforado. — Sem fronteira, não há elite. No Brasil, esses muros são frágeis fisicamente, mas os códigos são ainda mais importantes. Você pode ter dinheiro, mas não basta. É preciso reconhecimento. É o caso de lugares onde não adianta só pagar: os moradores decidem quem entra.

Luxos invisíveis
Além do new money e do old money, o autor divide seus retratados em diversos subgrupos. Entre as elites tradicionais, ele encontra categorias como os ocupados desocupados, que apelam para “trabalhos em cara de trabalho” para não parecerem desocupados. São os escritores sem página escrita, os curadores sem exposição, pintores sem tela pintada e designers de joia sem joias criadas. Já entre os novos ricos estão os criadores de um novo “eu”, que precisam atualizar seus gostos com urgência para se adequar aos ambientes exclusivos.

— O rico tradicional aprendeu desde cedo a usar as marcas certas, no tom certo, no momento certo — diz o autor. — Para nós, parece uma pessoa simples, de camiseta e calça jeans. Mas aquela camiseta pode custar R$ 15 mil. É um luxo invisível, legível só para quem compartilha os códigos.

Esse jogo de fronteiras e exclusividade, no entanto, não é sustentado por predileções autênticas e duradouras, aponta o antropólogo.

— O problema é que, no Brasil, não existe exatamente “gosto” na vida do rico — diz ele. — O que existe é moda. Hoje é Vik Muniz, amanhã Pollock, depois design escandinavo. Não é à toa que as bolsas aqui são aposentadas antes de acabar, né? Fulana compra a pulseirinha da Pandora, daqui a pouco ela joga fora a pulseirinha da Pandora, se mete na Love da Cartier e logo joga a Love da Cartier fora.

'Acessório exótico'
Após meses de acessos negados e encontros frustrados, a pesquisa de Michel Alcoforado deu uma virada quando ele consolidou sua persona midiática como “antropólogo do luxo”. Em 2015, por exemplo, ganhou um perfil na revista dominical do Globo. Posou chiquérrimo para fotos no Forte de Copacabana, de blazer azul-marinho e calça beige.

A publicação provocou frisson entre os ricos, diz ele, que passaram a disputar sua presença em eventos. Era arrastado pelas festas como “um acessório exótico, uma bolsa rara”, ou usado como objeto de ostentação quando um rico queria marcar uma reunião com outro rico. “Estou trazendo o Antropólogo”, costumava ouvir.

— Eram encontros bem estapafúrdios — lembra o escritor. — Me perguntavam coisas como: “Antropólogo, qual é o futuro da Humanidade?” Também fui colocado nesse lugar de intelectual que dá aula particular para madames. Mas elas não liam nada do que eu pedia. Acabava a aula, ficavam bebendo e eu tinha que ir embora, né? Era gentilmente convidado a me retirar. Até o momento em que comecei a ficar famoso na imprensa e passaram a me convidar para o pós-aula. Essas trocas com elas foram muito importantes para a pesquisa.

Com o sucesso na mídia, Alcoforado deixou de ser apenas um observador das elites para se tornar, ele mesmo, uma mercadoria de distinção. Passou a ser alguém capaz de fornecer a aura de “capital cultural” que dinheiro nenhum garante sozinho.

— Você não faz ideia da quantidade de blogueiras e madames que me escrevem dizendo que querem virar antropólogas — conta. — Quando digo: “Ótimo, está aí o programa de pós da USP, da UFRJ, da UnB”, respondem: “Não, a gente quer com você.” O problema é que não querem ler, querem o atalho.

Como em toda pesquisa antropológica, essa imersão no mundo dos ricos deixou marcas. Alcoforado descobriu um mundo de privilégios e possibilidades que não fazia ideia que existia — e sentiu o choque na pele ao voltar para a classe econômica depois de experimentar a executiva.

— Hoje, o vinho que cabe no meu bolso não é o vinho que eu gostaria de beber — brinca o autor. — Uma amiga me disse que o livro é um romance de formação, a jornada de um novo rico. A diferença é que eu não fiquei rico de verdade. Talvez agora com o livro eu fique.

Somos todos Odete?
A recepção dos ricos ao livro até agora tem sido positiva, conta Alcoforado. A leitura virou uma espécie manual para entender seus pares e rir de si mesmo.

— A Faria Lima é onde mais se vende o livro — revela autor. — Eles leem para entender como “os ricos se comportam”. No fim, se divertem, se reconhecem e também criticam a elite. É curioso: os ricos adoram criticar os ricos.

O lançamento do livro coincidiu com a volta de “Vale tudo” à TV, reacendendo o interesse pelas representações da elite. Volta e meia, Alcoforado compartilha no Instagram algumas de usas ideias sobre as personagens da produção. Tia Celina representa o rico que busca distinção nas classes populares: arte folclórica, marcas nacionais, artesanato local. O Afonso é o bon-vivant: performa sucesso em tudo, do corpo ao trabalho. A Heleninha é o desvio clássico da elite, pois se entrega aos prazeres e vícios. A Fátima é a nova-rica, obcecada em aprender códigos para entrar.

E Odete Roitman, essa representação máxima da elite tradicional? De onde vem o fascínio por ela?
— A gente se reconhece nela — diz Alcoforado. — Quando a Odete chega do exterior dizendo que o aeroporto virou rodoviária, é como se fosse a gente falando. A régua da distinção no Brasil é compartilhada por todos, não só pela elite. Nós só mudamos as peças, mas o jogo é o mesmo. Ela fala do aeroporto, e nós falamos do Tinder “orkutizado”. É o mesmo movimento.

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