Hirokazu Kore-eda diz que seu filmes são críticas à sociedade e lamenta preconceitos
Maior nome do cinema contemporâneo do Japão ganha mostra com 30 filmes no Rio
Nenhuma família é igual à outra no cinema de Hirokazu Kore-eda. Tampouco é perfeita. O diretor japonês, vencedor da Palma de Ouro em 2018, é conhecido por retratar famílias que fogem dos moldes tradicionais, muitas vezes formadas por vínculos de afeto mais do que de sangue. Segundo o próprio explica na entrevista abaixo ao GLOBO, as escolhas de seu cinema são uma forma de crítica ao conservadorismo xenófobo e nacionalista de seu país.
Sem medo de incomodar e de eventualmente ser taxado de “anti-japonês”, Kore-eda ganhou a idolatria de cinéfilos ao redor o mundo. Seus filmes estão sempre em festivais importantes, sobretudo Cannes, onde recebeu o prêmio máximo por “Assunto de família” (2018) e onde estreou obras como “Monstro” (2023), “Broker: uma nova chance” (2022) e “Pais e filhos” (2013).
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Esses e muitos outros filmes do diretor, num total de 30 obras, fazem parte da retrospectiva O Cinema de Hirokazu Kore-eda, cuja programação começa depois de amanhã (16 de julho) no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio (CCBB-RJ) e fica em cartaz até 11 de agosto.
Inteiramente gratuita, a mostra inclui até mesmo seus documentários feitos para a TV japonesa na década de 1990, praticamente desconhecidos do público brasileiro.
Na entrevista realizada por e-mail, o cineasta fala sobre suas influências, a importância da escuta em seu processo criativo, a tensão entre tecnologia e cinema, e o impacto de suas obras dentro e fora do Japão. Ele se encaixa numa linhagem de cinema social e explica que não tem a intenção de antagonizar a pensamentos conservadores — o que é diferente, segundo Kore-eda, de aceitar práticas que considera anti-intelectualistas e racistas.
Seus filmes costumam explorar o que é e o que representa uma família, mas quase sempre são famílias improvisadas, desfeitas ou pouco convencionais. Raramente vemos no seu cinema a família tradicional idealizada por grupos conservadores. O senhor diria que essas são as famílias contemporâneas do Japão?
Não é que eu comece um filme com a intenção de desconstruir a imagem da família tradicional. Mas, quando penso na possibilidade de outros tipos de família, acabo retratando laços que não são definidos pelo sangue. Isso porque, especialmente no Japão de hoje, há uma tendência muito forte em valorizar os vínculos sanguíneos, talvez ainda mais forte do que acontecia no passado. Já sobre a ideia de que essas famílias seriam “partidas”, acho que é uma leitura precisa, mas não acho que isso seja exclusivo do meu cinema. O (diretor japonês Yasujiro) Ozu, por exemplo, também fazia algo semelhante. Famílias sempre têm alguém ausente e também outro alguém que preenche essa lacuna. A família, para mim, existe de forma efêmera nesse processo contínuo.
Considerando o sucesso dos seus filmes no Ocidente, você acredita que o público de outras culturas também se identifica com as famílias não tradicionais retratadas em sua obra?
Honestamente, não sei. Mas acredito que a fragilidade das “comunidades”, e não apenas das das famílias, não é algo exclusivo de um único país.
Além do interesse pelas relações familiares, seus filmes também oferecem uma visão sensível sobre questões sociais mais amplas. Você vê essas histórias apenas como boas narrativas ou acredita que o cinema tem (ou deveria ter) um papel no debate público e na transformação social?
Eu considero o que eu faço uma crítica ao “mundo” ou à “sociedade”. Mas isso não significa que todos os filmes precisem fazer o mesmo. O desafio é que, se um filme for apenas uma crítica, ele pode não ser forte o suficiente enquanto obra cinematográfica. Essa que é a parte difícil.
Como os setores conservadores no Japão reagem às suas reflexões sobre família e sociedade? Seu trabalho recebe a mesma boa recepção no Japão que no exterior?
Hum, não sei. Procuro manter uma postura liberal, mas isso não significa que eu considere os valores tradicionais sem sentido. E não acho que meus filmes sejam tão antagônicos ao “conservadorismo”. A própria palavra “conservador” é complicada, sobretudo por causa das nuances que surgem na tradução. O “conservadorismo” que vemos atualmente no Japão parece uma mistura superficial de anti-intelectualismo, xenofobia, racismo e nacionalismo, em vez de um compromisso genuíno com valores tradicionais. Desse ponto de vista, suponho que meu trabalho possa ser rotulado como “antijaponês”. Mas, para ser sincero, eu realmente não me importo.
Em que medida a experiência com documentários moldou a base ética da sua ficção? Sua criação de personagens parte da escuta profunda do documentarista?
Sim, exatamente. Já comparei minha abordagem a um estetoscópio, em que ouço com atenção pequenos gritos que ninguém escuta. Acredito que o papel do diretor é sintonizar essas vozes silenciosas, em vez de gritar mensagens por um megafone.
Você costuma escrever, dirigir e montar seus próprios filmes. A narrativa evolui ao longo dessas etapas ou segue a mesma visão desde o início?
Ela muda, sim. E, como espero que mude, escolho estar presente em todas as etapas do processo. Muitas vezes, descubro algo na fase de montagem, volto ao roteiro, reescrevo cenas e até faço novas filmagens. Sou muito grato à minha equipe por tornar isso possível.
A tecnologia sempre impulsionou o cinema. Hoje, com a ascensão de ferramentas como câmeras de celular e inteligência artificial, você vê essas tecnologias como aliadas ou com preocupação?
As duas coisas. O acesso facilitado à filmagem abre novas possibilidades. Mas também faz com que algo se perca. Por isso, quando possível, ainda prefiro filmar em película. Isso ajuda o elenco e a equipe a compartilharem uma sensação de “estar aqui, agora”. Num tempo em que tudo é tão conveniente, acho que a presença da dificuldade, ou da limitação, passou a ter valor.
Sua obra é frequentemente comparada à de Yasujiro Ozu, mas você já declarou que suas influências estão mais em cineastas sociais como Ken Loach. Por que, então, seus filmes são associados a Ozu?
Sinceramente, não sei. No passado, eu até retrucava: “Não somos parecidos, eu adoro o Ken Loach!”. Mas, como a maioria das pessoas diz isso como um elogio, ultimamente aprendi a apenas agradecer com humildade. Dito isso, pessoalmente, eu não entendo muito bem o Ozu. Não sei por que ele coloca a câmera onde coloca, nem por que edita como edita. Está além da minha compreensão, então não é algo que eu conseguiria imitar. Mas isso não quer dizer que ache seus filmes entediantes, muito pelo contrário.
Que filme você recomendaria como porta de entrada para o seu cinema?
Essa é difícil. Talvez “O que eu mais desejo”. Se gostarem desse, então “Ninguém pode saber”. Se tiverem um pouco mais de tempo, “Assunto de família”. E, se estiverem passando por uma noite difícil, talvez “Nossa irmã mais nova” ou “Pais e filhos”.

