Qua, 24 de Dezembro

Logo Folha de Pernambuco
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS

"Quadrinhos são feitos por pessoas progressistas", diz Gerry Conway, um dos criadores do Justiceiro

Atração da CCXP de São Paulo, em dezembro, autor fala que Peter Parker hoje seria 'um incel no porão, mordido por uma internet radioativa'

Justiceiro, personagem criado por Gerry Conway Justiceiro, personagem criado por Gerry Conway  - Foto: Divulgação

O autor Gerry Conway se diz um pai orgulhoso. A frase repetida em seus perfis nas redes sociais diz respeito às filhas, Cara e Rachel. Mas também poderia ser usada pelo nova-iorquino de 72 anos para os personagens de histórias em quadrinhos que ajudou a dar vida em publicações da DC e da Marvel. É de sua mente que surgiram partes do Justiceiro, da Poderosa, do Crocodilo, de Jack Russell (da série “Werewolf by night”) e de Nuclear.

O início da carreira de quase 60 anos de Conway não poderia ser mais literário: ainda adolescente, aproveitava tours às instalações da DC para oferecer histórias aos editores. Com 16 anos, emplacou uma pequena trama de terror e não parou mais. É esse enredo que ele planeja dividir com os fãs que o encontrarem na CCXP, evento de cultura pop que acontecerá em São Paulo entre 4 e 7 de dezembro. Ao GLOBO, o autor lamentou que os quadrinhos de hoje tenham um público menor e explicou por que se orgulha de ter matado a personagem Gwen Stacy, a namorada do Homem-Aranha.

Quais são suas expectativas para a CCXP?
Me disseram que é uma das maiores convenções do mundo, e espero conhecer muitos fãs. Em outras convenções já aconteceu de trazerem quadrinhos que escrevi, mas em línguas estrangeiras. Isso sempre me pareceu estranho, porque enquanto eu crescia, (a produção das revistas) era praticamente só em inglês.

 

O autor Gerry Conway — Foto: Reprodução/Instagram

O senhor conhece o mercado dos quadrinhos há quase 60 anos. O público mudou?
Quando comecei, a expectativa era de que nosso público tivesse entre 10 e 13 anos. Embora tentássemos tornar as publicações mais atraentes para um público mais velho, ele teria, no máximo, 18 anos. Com o desaparecimento do mercado voltado para crianças e adolescentes, passamos a focar mais em um público leitor mais velho. Hoje em dia, eu acho que o leitor médio de quadrinhos deve ter entre 25 e 35 anos. Os quadrinhos ficaram muito mais caros.

 

Com maior o custo, menos pessoas podem acessar o conteúdo...
Fica muito complicado alcançar um público grande. Hoje em dia, o interesse é maior por quadrinhos realmente acessíveis, como o mangá. Eu diria que o mangá é o futuro dos quadrinhos voltados para um público amplo.

O senhor se posiciona politicamente em suas redes sociais. Acha que os quadrinhos podem ainda explorar essa questão?
Os quadrinhos são escritos por pessoas progressistas. E o ponto de vista que eles representam é progressista. Assim é o leitor mais velho, que provavelmente já está de acordo com isso, embora sempre haja uma parte do público que resista a essas visões. Isso era verdade na minha época e ainda é verdade agora. Isso tem influência, mas menos do que quando alcançávamos crianças de 10 a 13 anos. É algo que me entristece, é uma pena que não consigamos atingir um público maior.

 

Capa de 'O Espetacular Homem-Aranha' 129, de 1974, com a primeira aparição do Justiceiro — Foto: Reprodução

Policiais que reprimiram movimentos ligados ao Black Lives Matter usaram o símbolo do Justiceiro. O senhor acha que poderia ter feito diferente para evitar essa associação?
Ele foi criado para ser um vilão e se tornou um anti-herói, mas nunca representou um ponto de vista justo ou virtuoso. Era emocionalmente destruído, e usava a violência como sua arma. Mas tinha um código claramente definido: não estava necessariamente do lado da lei. Estava do lado da desordem. Na minha visão, era mais provável que atacasse a estrutura política, as forças da lei. Eu gostei muito do que fizeram na série “Demolidor: Renascido”. Eles pegaram o Justiceiro e mostraram como seu símbolo, o crânio, era apropriado por policiais corruptos. No final disso tudo, ele fez um discurso apaixonado, desafiador, em que basicamente disse: “Vocês estão errados. Vocês não me conhecem. Vocês não sabem a dor pela qual eu passei.” Ele rejeitou aquilo, aquele uso, completamente. Foi uma decisão muito acertada da Marvel.

Tem algo de que se orgulhe especialmente em sua carreira?
A morte da Gwen Stacy (assassinada pelo Duende Verde em uma história de 1973 do Homem-Aranha) foi uma conquista verdadeira. Também tenho muito orgulho de coisas que são um pouco menos reconhecidas, mesmo sendo importantes, como a edição 200 da Liga da Justiça da América (de 1982). Aquilo combinava meu amor pela “liga” original” pelas histórias escritas por Gardner Fox (1911-1986), e minha admiração pelos artistas que trabalharam nesses personagens ao longo dos anos.

Tenho muito orgulho do “Esquadrão Atari”, uma mistura estranha feita por motivos comerciais, mas que deu muito certo criativamente com o José García-López. Tenho orgulho de “Cinder and Ashe” (1988), outra produção minha com o García-López. Na verdade, tenho orgulho de quase todas as colaborações que tive com ele. E do meu trabalho no retorno à série do Homem-Aranha no final dos anos 1980. Escrevi de um ponto de vista mais maduro, porque era mais maduro.

Mas Gwen não era tão importante no quadrinho, certo?
Eu costumava dizer que a Gwen causou mais impacto com a sua morte do que em vida. Ela não era uma personagem particularmente interessante, e foi por isso que eu estava disposto a matá-la. Me sentia muito mais atraído pela Mary Jane como um potencial, não exatamente uma antagonista, mas um desafio para o Peter Parker, que o ajudava a amadurecer. O que refletia um pouco o momento em que eu estava na minha vida. Eu tinha uns 20 anos, 19 anos, e estava tentando entender as coisas. Tentando crescer, e foi daí que isso veio.

 

A Poderosa, da DC Comics — Foto: Reprodução

Os seios da sua personagem Poderosa cresciam a cada nova história. Isso pode ser considerado sexismo? O senhor já ouviu críticas por isso?
Não posso ignorar minha colaboração. Na primeira aparição, ela era uma mulher normal. De porte médio, forte, mas nada exagerado. Só que, ao longo do tempo em que o (desenhista) Wally Wood (1927-1981) fazia a arte-final da revista, por algum impulso travesso, foi aumentando os seios dela a cada edição. Acho que queria ver até onde conseguiria ir com isso. Durante muito tempo, fiquei bem dividido em relação à aparência dela. Depois, quando comecei a ir a convenções, vi que a personagem tinha sido abraçada por mulheres grandes. Era algo empoderador para elas. Pensei: bom, a gente precisa de uma personagem que represente esse aspecto específico da feminilidade. Você pode chamar de sexista, mas se as mulheres abraçam isso... Acho que não sou a pessoa certa para julgar. Acho que as mulheres que deveriam.

'Internet radioativa'
Qual a sua opinião sobre o machismo nos quadrinhos?

Houve um período nos anos 1990, eu diria até o início dos anos 2000, em que a objetificação das personagens femininas era realmente grotesca. Acho que hoje em dia isso acontece menos. Há muito mais criadoras mulheres, e elas tiveram um grande impacto, principalmente quando os homens começaram a perceber que talvez estivessem passando dos limites. Todos estamos evoluindo. Vai caber à Geração Z deixar sua marca. A minha geração estava ciente, eu diria, mas não ajudava muito. A gente tinha uma noção do que seria respeitoso, mas não sabia como colocar em prática.

Como o senhor imaginaria um herói ou um anti-herói da atualidade?
Ele provavelmente começaria, ou ela… não, ele provavelmente começaria como um incel (grupo de homens celibatários involuntários) no porão. Ressentido, alienado, com raiva. E ele teria que pegar os poderes e crescer a partir disso. Teria que, aos poucos, sair do seu ambiente e enfrentar o desafio. Aquela ideia de que "com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades". É uma história antiga. Crescer é uma história antiga para todo mundo. Só que a geração atual, tão cheia de raiva, enfrenta desafios que são difíceis de definir. Todo o movimento populista (atual) é uma reação à desigualdade crescente. Comecei a dizer, ainda no início dos anos 2000, que haveria uma revolução. Porque não daria para continuar do jeito que está. Eu só não esperava que fosse uma revolução de direita. Se você fosse criar um super-herói do zero hoje, o Peter Parker (da vez) seria um incel no porão. E seria mordido por uma internet radioativa.

Recentemente o senhor fez um tratamento de câncer no pâncreas. Como está sua saúde?
Melhor do que antes. Mas ainda enfrento desafios. O câncer não está avançando. A maioria dos meus problemas é consequência de ter 72 anos. A comorbidade do câncer enfraqueceu meu sistema imune. Tive osteoporose, quebrei os quadris. 2023 foi muito difícil. 2024 foi melhor. Em 2025, com exceção da política, as coisas têm estado bem melhores. Estou torcendo e seguindo um dia de cada vez. Feliz e ansioso pelo Brasil.

Veja também

Newsletter