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SHOW

Samuel de Saboia volta ao Recife para o seu rito de estreia no Coquetel Molotov

Artista pernambucano, pintor de carreira meteórica, Samuel apresenta o show do seu primeiro álbum, "As Noites Estão Cada Dia Mais Claras"

Samuel de SaboiaSamuel de Saboia - Foto: Rafael Pavarotti/Divulgação

Entre quadros, sons, fusos e fé, Samuel de Saboia chega ao Recife depois de semanas cruzando continentes com a mesma naturalidade de quem atravessa um corredor:

“Cheguei de Londres tem dois dias… deixei a mala em casa e fui direto pro ensaio”, contou, em entrevista à Folha de Pernambuco, o artista recifense de 28 anos, que se apresenta, neste sábado (6), no festival No Ar Coquetel Molotov.

Será o primeiro show de Samuel em sua terra natal, onde apresentará o repertório do seu álbum de estreia, “As Noites Estão Cada Dia Mais Claras”, forjado em meio a uma vida de muitos deslocamentos.

Entre risos, a conversa com Samuel é atravessada por memórias, fuso-horários e a pressa boa de quem está vivo demais para ficar parado. “Eu pedi muito para Deus viver assim.”

Cidadão do Totó e do mundo
Samuel de Saboia leva uma vida de ziguezagues – seja entre Paris, São Paulo, Bruxelas, Londres –, vida que começou num quarto atrás da igreja onde seus pais eram pastores, no bairro do Totó, Zona Oeste do Recife. 

Foi ali que ele começou com as primeiras pinceladas e traços; e foi dali que saiu, aos 17 anos, com R$ 1 mil no bolso e a convicção, precoce e feroz, de que queria viver de arte. “Decidi cedo. Decidi ainda no Totó que isso iria acontecer.”

“Eu não consigo parar por muito tempo, a não ser que seja para… sei lá… porque eu tirei o ciso e tenho que ficar duas semanas dentro de casa. A única coisa que me parou até hoje foi isso, o ciso”, conta, com a mente tão ágil quanto suas movimentações mundo afora.

“Eu acho que eu tenho sido a grande diversão da minha terapeuta”, conta Samuel, entre sorrisos. Ele já foi faxineiro, entregador, vendedor de galeto, trabalhou na Cultura Inglesa etc. “Era um mar de impossibilidades”, diz. Mas, havia sempre a pintura – íntima, visceral – abrindo frestas. 

Hoje, aos 28 anos, é o artista mais jovem com exposição no Los Angeles County Museum of Art (LACMA); está, também, no Museu Thyssen-Bornemisza, em Madri (Espanha), em Knokke e em Bruxelas, ambas na Bélgica. Um brasileiro único em instituições onde, por muito tempo, não havia nenhum.

Pintura, música e corpo como lugar de passagem
A trajetória internacional meteórica o colocou numa engrenagem veloz. Mas, para além do que as artes visuais lhe possibilitaram, seu corpo – “cavalo” que é dessa entidade arte – pedia mais. “Eu trabalho minhas emoções de maneira corporal… pintar é emocional, cantar é emocional”, diz.

Foi dessa fricção – entre gesto, corpo, viagens, fé, cansaço e epifania – que nasceu “As Noites Estão Cada Dia Mais Claras”, seu primeiro álbum, produzido em trânsito, entre Tóquio, Paris, Salvador, Londres e São Paulo. Um disco de migrações: sentimentais, geográficas, espirituais.

O álbum tem produção assinada por Samuel, em parceria colaborativa com amigos de de longa data: LLEZ (o multi-instrumentista mato-grossense Zelo), Lucas Cavallin (Winebathory, Marrakesh) e Victor dos Anjos – que já trabalhou com nomes como Bruno Berle, Castello Branco e MC Brinquedo.

O som de “As Noites Estão Cada Dia Mais Claras” carrega as travessias de Samuel. Rock nordestino, psicodelia, MPB, pop, espiritualidade estão no diverso disco, um diário de bordo, como ele diz, que quase se chamaria “Diário de Uma Onda Fora do Mar”

No palco, ele chega com uma banda de sete músicos – uma “micro sociedade”, como descreve –, formada por artistas de diferentes regiões, gêneros e vivências. Gente “musicão”, como ele frisa, com quem construiu intimidade e confiança.

O show para o Coquetel Molotov, garante Samuel, está “quentíssimo” e traz, também, músicas inéditas do próximo álbum, já em fase de gravação. 

Fé, contradição e retorno
Entre uma viagem e outra, Samuel fala de espiritualidade com uma maturidade afetuosa e desarmada.

Cresceu em um lar evangélico, a avó era do terreiro, mas, ele nunca fez da contradição um motivo de guerra interna. “Minha relação com Deus é muito boa, com Jesus é muito boa, com Oxalá é maravilhosa.”

Seus pais, que são pastores evangélicos, estarão no festival. Assistirão ao filho no palco pela primeira vez.

“Isso é muito lindo, que eles me vejam no estado de potência que não é o que eles são acostumados. Eles estão acostumados a me ver de short e sandália e sem camisa, então, vai ser uma outra persona ali apresentada. Eu acho que vai ser um prato cheio para a terapia na outra semana”, brinca Samuel.

É simbólico. É íntimo. É um retorno. Uma costura entre o menino que migrou atrás de um sonho e o homem que volta trazendo o mundo dentro do peito.

Recifes, reencontros e a vingança colorida
Apesar das vitrines internacionais, Samuel sabe exatamente de onde veio. E sabe que, para subir, precisou escalar paredes que não deveriam existir. 

“Eu não sou de nenhuma família [tradicional] de Recife, eu não sou nenhum ‘nepo’, eu sou neto de um senhor que, antes de ele criar o trabalho dele e transformar a vida dele em algo possível, ele era carroceiro (....) Em Recife, a vida não é fácil pra quem é preto e periférico.”

“É muito engraçado, porque eu tenho um escárnio natural de todo mundo que eu vejo dessas possíveis cenas e espaços, que são ‘filhos de alguém’ e que não alcançam… que não andam e que não se mexem (...) Porque eu fico assim: ‘gente, eu tava com duas mãos atrás, uma arma na cabeça, e tô fazendo o que eu tô fazendo, e vocês aí, morando na Torre, sem se mexer, sabe? Ah, me desculpa, não consigo ter pena.”

Samuel carrega, porém, o prazer e a responsabilidade de reescrever o próprio território. “Se eu tivesse ficado em Recife com 17 anos, eu não estaria aqui. Ter saído me salvou. Hoje, eu volto inteiro.”

O show no Coquetel Molotov é, para ele, mais que uma apresentação. É um rito. Uma chance de trazer o que o mundo viu de sua arte para a cidade onde ela nasceu.

Afinal, como ele canta, a noite pode ser longa, mas as noites estão cada dia mais claras. E no Recife, Samuel parece pronto para acender mais uma.
 

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