Sáb, 06 de Dezembro

Logo Folha de Pernambuco
Cinema

"Tempo de guerra" recria cerco da al-Qaeda e Estado Islâmico contra soldados dos EUA

Longa dirigido por Alex Garland tem codireção do ex-militar Ray Mendoza, cujas memórias da invasão do Iraque em 2006 serviram de referência para o enredo

Kit Connor como Tommy em Tempo de GuerraKit Connor como Tommy em Tempo de Guerra - Foto: A24/Divulgação

A ideia do novo filme surgiu no set de “Guerra civil”, em longas conversas sobre a natureza das guerras que o roteirista e diretor inglês Alex Garland teve com o consultor Ray Mendoza, um ex-militar das forças especiais da Marinha americana.

Lançado no ano passado, no ciclo eleitoral polarizado entre republicanos e democratas, o filme estrelado por Kirsten Dunst e Wagner Moura especulava, a partir de personagens inspirados em repórteres, como seria uma guerra civil contemporânea nos Estados Unidos. Fantasia.

Já “Tempo de guerra” — filme de Garland, agora assinado com Mendoza”, que estreia hoje nos cinemas brasileiros — reproduz, a partir das memórias de seus protagonistas reais, o horror pelo qual passou em 2006 o pelotão de Ray Mendoza ao ser encurralado numa casa em Ramadi, durante a invasão americana no Iraque, por homens armados da al-Qaeda e do Estado Islâmico. Ultrarrealismo.

Sem lições em diálogos
Durante 1h30, e em sua quase totalidade em tempo real, Garland transporta, sem panos quentes e com trabalho de câmera impressionante, o espectador para o horror da guerra.

Ao sair da sala de cinema, a plateia continua — propositadamente, conta o diretor ao Globo em entrevista por chamada de vídeo — sem saber muito sobre os militares, o contexto da missão e como o episódio dramático alterou suas vidas. Também não há diálogos existencialistas sobre o que os rodeia.

Diferentemente de “Guerra civil”, sobre o risco dos extremos e um filme de estúdio, “Tempo de guerra”, produzido e distribuído pela celebrada indie A24, é pacifista por tabela, ao escancarar o horror sem sentido aparente para a vida dos envolvidos na carnificina.

"Os dois filmes são parte de como vejo os EUA, o Reino Unido, o Brasil neste momento, não estão em conflito" explica o diretor.

"E não faz diferença para a audiência chegar em “Tempo de guerra” dominando o contexto histórico específico retratado. Parto do princípio de que faz parte do humano entender o horror da guerra. Não quero educar a plateia sobre como deve reagir ao que mostro. Nem todos os filmes precisam ser educativos desta maneira"

“Tempo de guerra” não é parente de clássicos do gênero como “Apocalypse now” (1979), de Francis Ford Coppola, “O resgate do soldado Ryan” (1998), de Steven Spieberg, ou “Falcão negro em perigo” (2011), de sir Ridley Scott.

Garland evita narrativas individuais de glória, redenção ou aprendizado. Curto em extensão, tem ambição imensa: reinventar o gênero.

"Meu trabalho central, e dos atores, foi o de capturar cada detalhe da narrativa dos militares. Ouvir para repetir. Busquei precisão, algo no qual o cinema falhou em projetos baseados em ficção que buscavam amplificar a ficção para tornar a narrativa mais romântica ou eletrizante" diz ao Globo.

"Alertei os atores assim que fechamos o elenco: tentaremos desaprender o que absorvemos em Hollywood nos filmes do gênero"

Codiretor, Mendoza participou não só da gênese do projeto como das três semanas de treinamento intensivo do elenco — formado por nomes de destaque da nova geração de atores do cinema e das séries em língua inglesa, dos dois lados do Atlântico Norte, entre eles Kit Connor, Joseph Quinn, Cosmo Jarvis, Will Poulter, Charles Melton, e D’Pharaoh Woon-A-Tai.

E o ex-militar de elite também estava, claro, assim como alguns de seus parceiros à época, nas filmagens, para que tudo fosse reproduzido cirurgicamente.

"Deixei claro para Alex que nada estaria fora dos limites para ser usado. Foi especialmente difícil para mim reviver o inferno, as perdas humanas, o horror daquele dia. Mas o resultado, uma homenagem àqueles homens, me deixou realizado" conta Mendoza.

Wagner Moura, humanista
Ele também lembra os dias de “Guerra civil” em que teve de “cuidar para que Wagner, esse ator incrível, permanecesse são e salvo em um set repleto de armas, tanques, aviões, explosivos”.

Garland repete os elogios ao ator baiano:

"Um sujeito com um belíssimo coração, um humanista. Às vezes, quando se é catapultado para o universo de Hollywood, a pessoa deixa de ser quem é, os pés não ficam mais plantados no chão, onde deveriam, mas os do Wagner seguem lá. Adorei trabalhar com ele e espero repetir a dose"

Lá fora, a crítica a “Tempo de guerra” foi majoritariamente positiva.

Entre os poréns apontados se destacaram o perigo de o ultrarrealismo disfarçar um tique fetichista por conflitos armados e a razão de ser de uma captura tão fiel aos horrores da guerra quando se está ao alcance das mãos os relatos gráficos das vítimas de carne e osso no Congo, Sudão, em Gaza, Israel, Ucrânia e Rússia.

Sem vencedores
Numa das poucas frases que ficam na cabeça do espectador, uma mulher iraquiana que vivia na casa ocupada pelo pelotão para servir de base improvisada em Ramadi, e que permanece, sem escolha, no local, repete duas vezes “por quê?” em meio ao desastre de uma missão que não deu certo para ninguém.

No Guardian, o decano Peter Bradshaw revelou incômodo com a maneira como os civis iraquianos são retratados em “Tempo de guerra”, inclusive na tradicional série de imagens “reais” após o fim da projeção. Suas faces são apagadas, por razões, também, de segurança.

“Mas o apagamento”, pontua, “se confunde com irrelevância”.

A escalação de “Tempo de guerra” é um dos chamarizes do filme e lembrou cabeças mais grisalhas dos departamentos de marketing em Hollywood de filmes capazes de revelar uma nova geração de estrelas do cinema.

Um dos paralelos foi com “Vidas sem rumo”, de Francis Ford Coppola, lançado em 1983 com um meio-campo formado pelos então pouco conhecidos Patrick Swayze, Matt Dillon, Tom Cruise, Rob Lowe, Emilio Estevez e C. Thomas Howell.

Uma impropriedade imediata da comparação é contrapor um drama sobre as dificuldades da entrada na vida adulta, com necessário investimento na composição de personagens, a um projeto com pendores radicais que exigia dos atores desenvolver a capacidade de ouvir com atenção e repetir com precisão o que lhes era relatado, inclusive nas filmagens, pelos ex-militares das forças especiais da Marinha que reviviam um dos piores dias de suas vidas.

"Foi uma honra, mas também extremamente desafiador, tanto tê-los no processo desde o início quanto do ponto de vista da atuação, pois só contávamos com a memória deles como guia" diz ao Globo Kit Connor, que vive Tommy, o novato no pelotão.

O ator inglês de 21 anos, sucesso na Broadway como um dos protagonistas da versão do diretor teatral Sam Gold para “Romeu e Julieta”, de Shakespeare, se tornou conhecido pelo Nick Nelson da série “Heartstopper”, da Netflix, um adolescente que se descobre bissexual no colégio e conquista o espectador por sua inteligência emocional e capacidade de olhar para os outros.

Em “Tempo de guerra”, Connor divide a tela com outros nomes de destaque do universo do streaming. D’Pharaoh Woon-A-Tai, indicado ao Emmy pelo Bear Smallhill da cultuada série “Reservation dogs”, da Hulu, encarna no filme o codiretor Ray Mendoza.

Vivem personagens inspirados nos demais membros do pelotão (alguns deles com nomes trocados, já que seguem na vida real trabalhando em missões secretas das forças armadas ianques) Joseph Quinn, o Eddie de “Stranger things”, Charles Melton, o Reggie de “Riverdale”, Will Poulter, de “O urso”, e Cosmo Jarvis, de “Shogun”.

Também estão no elenco, em papéis menores, o brasileiro Henry Zaga e Michael Gandolfini, filho do saudoso James “Tony Soprano” Gandolfini e que consegue roubar a cena em uma produção que exigia dos atores a anulação não só de suas personalidades mas as dos próprios personagens.

"Convivência foi o caminho"
O foco na irmandade necessária para a sobrevivência em cenário desesperador surgiu desde a ideia inicial de “Tempo de guerra”, nas primeiras conversas entre Mendoza e Garland, no set de “Guerra civil”.

E aumentou nas três semanas e meia de “acampamento” em que o elenco fez uma imersão na história real no interior da Inglaterra.

Em determinado momento, todos rasparam a cabeça, símbolo de que seria, a partir de então, “um só”.

"Honestamente, houve pouquíssimo espaço para nossos egos lá. Escapamos das necessidades individuais, armadilha em que nós, atores, caímos com alguma frequência. Dito isso, não foi nada 100% espartano, dormíamos em um hotel, nos alimentávamos bem. O mais interessante foi o processo. Neste caso, além do clichê, a experiência da convivência foi de fato o caminho para se chegar ao resultado final" diz Quinn ao Globo. (Eduardo Graça)

Veja também

Newsletter