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Tecnologia

China tem meta de liderar IA até 2030. Para especialistas, há lições para o Brasil

Com investimento estratégico em inteligência artificial desde 2017, Pequim aposta em soberania digital para consolidar influência

DeepSeek foi lançado no início deste ano, mas é fruto de investimentos anteriores da China em IADeepSeek foi lançado no início deste ano, mas é fruto de investimentos anteriores da China em IA - Foto: Greg Baker / AFP

Ao lançar um modelo de inteligência artificial tão potente quanto os de gigantes americanas, mas com custos inferiores, a DeepSeek sacudiu a indústria de tecnologia e desafiou o domínio dos EUA no setor. Para a China, no entanto, desenvolver sistemas capazes de redesenhar o jogo geopolítico da IA já era um objetivo traçado há quase uma década.

Anos antes dos robôs de IA se tornarem populares com o lançamento do ChatGPT, Pequim já havia estabelecido um programa nacional para liderar globalmente o setor. Lançado em 2017, o “Plano de Desenvolvimento de Inteligência Artificial de Próxima Geração” estabeleceu 2030 como prazo para alcançar a supremacia tecnológica.

A estratégia incluiu diretrizes para a formação de profissionais, desenvolvimento industrial e avanço na pesquisa científica, além de investimentos em infraestrutura e regulação. Para especialistas ouvidos pelo GLOBO, o planejamento chinês de longo prazo, que levou à ascensão da DeepSeek, traz lições sobre soberania digital para o Brasil.

O plano chinês tem metas escalonadas. Para 2025, planejava alcançar “avanços significativos” em teorias básicas de IA e posicionar a indústria chinesa de inteligência artificial na cadeia de valor global.

Professor e coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio, Luca Belli destaca que os avanços chineses na IA não nasceram de um vácuo. Antes disso, o país já havia implementado políticas fundamentais para criar um ambiente digital avançado, como o plano Internet Plus, de 2015, que visava integrar infraestrutura digital a setores da economia e expandir a conectividade da população.

— Há vários elementos envolvidos na soberania digital. Pesquisa, desenvolvimento e regulação devem estar combinados com investimento em dados, conectividade, capacidade computacional e capacitação, entre outros fatores — afirma o professor.

Autonomia para IA
Belli é um dos organizadores do livro “Soberania Digital nos Países do BRICS”, publicado pela Universidade de Cambridge. Na obra, os pesquisadores ressaltam que a soberania digital envolve a capacidade de um país moldar e administrar suas próprias infraestruturas tecnológicas, evitando dependência excessiva. A abordagem não significa isolamento nem a rejeição de tecnologia estrangeira, mas sim a autonomia.

— A ascensão da DeepSeek é fruto de um planejamento de longo prazo que o Brasil ainda não faz — avalia Belli. Ele destaca que política industrial e incentivos financeiros foram determinantes para o avanço chinês, e que a criação de marcos regulatórios para tecnologia deve ser acompanhada de investimentos em pesquisa.

Coordenador do CyberBRICS, que reúne pesquisadores de China, Brasil, Índia, Rússia e África do Sul, Belli enfatiza que a soberania digital é ainda mais relevante diante da aceleração da IA. Dependência excessiva de um único país ou grupo de empresas pode ser um risco, defende, já que isso pode limitar o acesso a tecnologias essenciais e expor o país a restrições geopolíticas e comerciais.

Renan Martins, vice-presidente e diretor regional de tecnologia da Thoughtworks na América Latina, enfatiza que o debate sobre soberania precisa ir além do controle regulatório: trata-se de criar um ambiente favorável à inovação.Ele destaca que, apesar das diferenças entre Brasil e China, algumas lições podem ser aplicadas, como uma estratégia de longo prazo para IA.

—Investir em infraestrutura digital e fomentar a produção local de tecnologias emergentes são passos essenciais para que o país amplie sua competitividade global. Há elementos do modelo chinês que podem servir de inspiração para o Brasil, como a visão de longo prazo e o foco na aplicação prática da inovação. — avalia o executivo.

Aliança entre ciência e indústria

O especialista ressalta que o avanço da China para dominar a IA também se explica pela relação entre setor privado e público, além da integração entre pesquisa e empresas. Baidu, Alibaba e Tencent, consideradas as “big techs” chinesas, fazem parte dessa estratégia nacional de inovação.

Além disso, o país tem investido consistentemente na formação de especialistas em IA. Segundo o think tank MacroPolo, metade dos pesquisadores de alto nível em IA do mundo está na China — em 2019, eram 29%.

A estrutura da DeepSeek reflete essa ligação entre pesquisa e setor privado. Seu fundador, Liang Wenfeng, tem origem no mercado financeiro, mas contratou uma equipe de 200 cientistas ligados a universidades chinesas. No artigo técnico sobre o DeepSeek R1, modelo mais potente da startup, a DeepSeek lista esses pesquisadores como coautores.

— São pesquisadores altamente qualificados, que conseguem traduzir conhecimento técnico em tecnologia, matemática e ciência da computação para aplicações práticas em IA — afirma Cleber Zanchettin, professor do Centro de Informática da Universidade Federal de Pernambuco (CIn-UFPE). — Eles conseguem traduzir esse conhecimento técnico em processos eficientes.

Modelos mais eficientes
Zanchettin ressalta que uma das lições trazidas pela DeepSeek é que a inovação não depende exclusivamente de orçamentos bilionários, mas sim de uma estrutura que incentive a pesquisa colaborativa e o desenvolvimento de soluções acessíveis:

— Hoje, ficou claro que pequenos grupos de pesquisa também podem competir no setor de IA. Se houver uma equipe qualificada e um ambiente que estimule a inovação, é possível gerar avanços significativos, mesmo sem os recursos das grandes potências.

O próprio CIn-UFPE, um dos principais polos de IA na América Latina, demonstra essa dinâmica. Criado há mais de 40 anos, o laboratório consolidou protagonismo regional ao investir consistentemente ao longo do tempo e abrir-se à iniciativa privada para gerar a aplicação do conhecimento acadêmico.

— Se a pesquisa não gera impacto na sociedade, no setor privado e nos órgãos governamentais, ela não se sustenta — afirma o pesquisador, que lembra que o Brasil tem centros importantes de tecnologia, como o de Recife, mas ainda precisa consolidar uma estratégia nacional para formação e inserção de pesquisadores na indústria.

Outro ponto relevante da estratégia chinesa é a aposta no modelo open source da DeepSeek, que facilita a adoção da tecnologia por outros países. Embora existam outros sistemas abertos de IA criados por grandes empresas, como os da Meta, os modelos da startup chinesa exigem menor capacidade computacional para rodar, tornando-se mais acessíveis.

Brasil foi referência em softwares livres
Segundo Luca Belli, essa estratégia não apenas impulsiona a inovação, mas amplia a influência do país em outros mercados:

— Ao oferecer seus modelos abertos, a China fomenta a adoção da tecnologia e fortalece seu papel no ecossistema global.

O pesquisador lembra que o Brasil já teve destaque nesse campo. No primeiro governo Lula, adotou o software livre como política pública, promovendo sistemas abertos em órgãos governamentais. No entanto, o país focou na adoção sem incentivar a produção local, o que impediu a consolidação de um ecossistema sustentável, na avaliação de Belli. Sem incentivos, o Brasil perdeu protagonismo, acrescenta.

Embora o Brasil ainda esteja distante de uma soberania digital em IA, os especialistas lembram que o país já demonstrou que pode ser referência em tecnologia. Além da política de software livre, que marcou a estratégia tecnológica no início do século, o livro Soberania Digital nos Países do BRICS, por exemplo, destaca o protagonismo brasileiro na criação do Marco Civil da Internet e sua liderança na implementação do Pix, um sistema que se tornou modelo internacional.

Plano brasileiro de IA
No entanto, diferentemente da China, que combina regulação com investimento e políticas industriais, o Brasil não consolidou uma estratégia robusta para IA, avaliam os pesquisadores.

—O plano de IA apresentado no ano passado é um avanço enorme. O problema é que o Brasil não enxerga o avanço da IA de maneira sistêmica — diz Belli, sobre o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA), que prevê um investimento de aproximadamente R$ 23 bilhões em 4 anos.

Apesar de visto com bons olhos, o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) é também apontado como insuficiente para fortalecer o setor e reduzir a dependência estrangeira. A estratégia também tem sido questionada pela falta de objetivos mensuráveis e de um cronograma claro para a implementação das ações, como a China faz há décadas em suas empreitadas tecnológicas. O déficit estrutural em formação em áreas técnicas é outro desafio.

— Talvez a maior lição da China seja o de fazer da Inteligência Artificial um pilar estratégico do desenvolvimento nacional. — diz Martins.

Cleber Zanchettin reforça que, além da aposta na cultura de open source, um caminho para o Brasil é investir em modelos de IA menores e especializados, que atendam de forma mais específicas às necessidades locais:

—Temos que jogar de forma eficiente, pois não temos os mesmos recursos de outras nações. O open source pode ser um diferencial estratégico para acelerar o desenvolvimento e reduzir custos — avalia ele.

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