Da Desconfiança Humana
Não penso em falar sobre a invasão da Ucrânia, propriamente, e nem acerca do “status” da guerra. Oxalá essa tragédia tenha terminado ou esteja perto do fim quando da publicação desta crônica. Por isso, tentarei fazer uma abordagem para encontrar, na história recente das nações, sintomas das causas que justifiquem o que estamos vendo, e que ensejam comportamentos repetitivos, no desiderato de uma frágil segurança.
Pondero que as potências ocidentais, com o fim da União Soviética, possam haver perdido uma grande oportunidade de construir mecanismos supranacionais, em conjunto com as nações do Leste, capazes de alcançar metas de desarmamento progressivo e de regras mais sensíveis de proteção à paz, para ser bem raso. A ONU, tal como estruturada, sabe-se que falhou.
Ocorreu o contrário. A corrida bélica e insana só se intensificou dos anos 1950 para cá. Depois, a queda do muro de Berlim relevou fraturas econômicas e de estratificação de classes na “mãe Rússia”, que só não a levaram ao isolamento completo pela salvação trazida do petróleo e do gás natural, que alimentam a Europa. E ela continuou se armando e avisando. E a OTAN, por seu turno, montando alianças e fazendo movimentos para abafá-la.
Não cabe aqui nenhuma contemporização com o horror da invasão deflagrada por Moscou. A guerra na Ucrânia é crime humanitário, e ponto. A intenção real aqui é trazer aspectos da condução econômica dos governos e do pensamento humano, no seu egoísmo, buscando compreender suas consequências tão nocivas.
Fui um estudante mediano de Economia na UFPE nos anos 80, no entanto o desafio a que essa ciência se impõe sempre me entusiasmou a continuar lendo sobre sua história. O aluno não era dos melhores, mas o encantamento de altíssimo nível. Abandonei o curso precocemente e viria a me formar em Contábeis, um bom tempo depois.
Economia, alguns falam que está um pouquinho perto da engenharia, por conta dos cálculos. Ciência inexata por excelência. Humana. E ler sobre economia desemboca em geopolítica, conflitos entre povos, relações entre países, tentar conhecer a raça humana etc. Recomendo o livro do professor Niall Kishtainy, titular de História do Pensamento Econômico da London School of |Economics, “Uma Breve História da Economia”, que navega no desenvolvimento da ciência, seus mentores e tentativas de vaticinar cenários da aventura terrena, desde o tempo das cavernas até os nossos dias.
Repousando o olhar sobre o recente episódio no leste europeu, refleti ser importante falarmos do “Modelo Espiral” e do “Dilema do Prisioneiro”, brilhantemente e de forma acessível abordados pelo professor na citada obra.
No que diz respeito ao “Modelo Espiral “ ou “Conflito de Segurança”, são nomenclaturas adotadas para designar as relações internacionais sob um sistema anárquico, onde cada país no afã de priorizar a ilusão de segurança ao seu povo, promove o incremento de sua força militar, investimento armamentista e política de alianças para mostrar sua robustez. Nasce nos outros estados a vontade de resposta na mesma medida, trazendo resultados que nem um e nem o outro deseja. Está estabelecido o modelo que retroalimenta o medo e o conflito que irrompe as fronteiras.
Com relação ao instigante “Dilema do Prisioneiro”, que na mesma monta do modelo anterior trata na sua centralidade da confiança do ser humano no outro, porquanto versa sobre a falta desta. Esse tema faz referência, estendida sua perspectiva às nações, a “Teoria dos Jogos”, importante ferramenta para percepção das atitudes dos países no mapa global.
Estritamente sobre esse dilema, cada jogador/país buscará a maior vantagem para seu lado sem se importar com o resultado do outro jogador, perdendo a oportunidade de perseguir um caminho harmonioso que, em tese, seria melhor para os dois lados. A diagramação clássica, elaborada em meados do século XX por Albert W. Tucker, traz a situação em que dois suspeitos, sobre os quais pesam provas insuficientes, são inquiridos separadamente pela autoridade policial. A eles são dadas as opções de caso delatem o outro, e aquele permaneça em silêncio, o dedo-duro será liberto e o outro passará 10 anos vendo o “sol nascer quadrado”. Se ambos traírem, terão 5 anos de cadeia. Caso silenciem, pegam apenas 6 meses de pena.
Não precisa dizer que, movidos seja pelo improvável sonho de liberdade ou pela convicção de que seriam delatados pelo “oponente”, ambos optam por entregar o outro e acabam levando pena de 5 anos de prisão, quando o resultado de equilíbrio, o mais vantajoso, seria emudecer e cumprir 6 meses de reclusão. A saída para essa enrascada (Seu Dakir, meu querido pai, gostava de mais dessa expressão) está no postulado “Equilíbrio de Nash”. Contra o comportamento óbvio de ceticismo, o moderador do jogo imputa gradativos “castigos” aos delatores. Assim, em sucessivas rodadas, os jogadores são empurrados, paulatinamente, à convergência. Lembram do filme “Uma Mente Brilhante”, onde Russel Crowe (mais conhecido por Maximus Decimos Meridius, comandante dos exércitos do Norte) encarna o iluminado professor John Nash Jr.? Pois é, o velho Nash, pirado e genial, seria Nobel de Matemática depois que descobriram que ele não era somente doido. Mas isso é outra história. A realidade é que, impulsionados pela desconfiança humana, continuamos escolhendo terrivelmente mal.
Rogo por fim que o sofrimento da Ucrânia seja o menor ou menos duradouro possível, e também permaneço em oração e na esperança que o homo sapiens, tão fantástico em avanços científicos, possa acordar e honrar o planeta que herdamos e que grita por socorro.
* Bacharel em Ciências Contábeis e Controller
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