Sex, 26 de Dezembro

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Opinião

Dolo, má-fé e outros contratempos jurídicos

O Direito é uma das áreas de atuação cuja linguagem é, por excelência, técnica em demasia. Militar no mundo jurídico não é, portanto, descomplicado. Parte dessa complexidade decorre do formalismo de que a seara jurídica, naturalmente, é revestida. Outro quinhão é por conta do tecnicismo próprio que alguns termos e expressões ganham no universo da linguagem e ritual forense.

No direito penal, o binômio culpa e dolo permeia as falas, não sendo raro se encontrar até a pronúncia incorreta, em relação à segunda palavra, que deve ser feita com o timbre da primeira sílaba, de forma aberta (dó).

Fora esse problema de linguagem, há o de conhecimento real do conceito que, por sua vez, é determinante em relação à classificação de um delito e da pena a ele aplicável.

Recentemente, o famoso e fatídico caso da “Boate Kiss” voltou aos holofotes. Perquiriu-se durante o julgamento, se as condutas delituosas (olha aqui outra expressão própria do Direito!), seriam tidas como culposas ou dolosas (com timbre aberto, repise-se). O dolo, ali imaginado, seria do tipo eventual, que se caracterizaria, quando o agente não quer o resultado, diretamente (porque aí seria dolo direto), mas assume o risco de produzi-lo.

Outro termo comumente utilizado no meio jurídico, especialmente no Direito Civil e no do Consumidor, é o de “má-fé”. É que a boa-fé já é tão dignificada pelo Direito, que foi prescrita, como cláusula geral, no atual Código de processo civil: “Art. 5º. Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé”.

Nas relações de consumo, a boa-fé determina até os limites da condenação, como, por exemplo, ocorre nas cobranças indevidas. Quando ausente a má-fé de quem cobra, não se obriga o condenado a restituir (em dobro) o valor que cobrara, mas somente o valor, na forma simples.

Ver-se que o exame das circunstâncias em que um ato (cível ou criminal) é praticado, formará a convicção do julgador, pois determinará as especificidades da conduta.

No caso de se pleitear restituição de valores cobrados indevidamente, nas relações de consumo, persiste no Superior Tribunal de Justiça, o entendimento de que “a devolução em dobro é cabível quando a cobrança indevida consubstanciar conduta contrária à boa-fé objetiva". Em miúdos (se é que há no Direito alguma miudeza), dir-se-ia que a devolução em dobro não depende da demonstração de má-fé por parte do fornecedor.

No caso específico que determinou a celeuma no STJ, no Recurso Especial nº 1.823.218, discutiu-se o caso de uma cliente de banco, analfabeta, que contestara os descontos de empréstimos consignados, os quais, segundo ela, não foram contratados.

Ainda no ano passado, mais de 49 mil processos se encontravam com julgamento sobrestado, em razão da necessidade de se demonstrar ou não a má-fé, o que exige dos litigantes não só que a fé seja boa, mas muita, muita fé mesmo!


*Defensor Público do Estado de Pernambuco e professor


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