Ex-Estado Islâmico e ex-al-Qaeda, líder de força rebelde que tomou Aleppo promete tolerância religio
Al-Jawlani emitiu decretos ordenando proteção de cristãos e xiitas e exigindo que seus homens não fizessem retaliações, mas grupos de direitos humanos denunciaram detenções arbitrárias
Abu Mohammed al-Jawlani, de 42 anos, surpreendeu a população de Aleppo na semana passada. Após marchar triunfante sobre a segunda maior cidade da Síria, o principal comandante das forças rebeldes que enfrentam o regime do presidente Bashar al-Assad não se envolveu em uma onda de assassinatos contra minorias religiosas — marca registrada do Estado Islâmico (EI), que também atua na região.
Ao contrário, emitiu decretos ordenando a proteção de cristãos e xiitas e exigindo que seus homens não fizessem retaliações. Para analistas, sua liderança "pragmática e utilitária, e menos ideológica", com fortes ambições políticas, marca uma transformação raramente vista na região. Mas muitos duvidam que sua promessa de tolerância será cumprida.
Leia também
• Aumentaram a pressão sobre a UE para finalizar acordo comercial com o Mercosul
• Macron tacha pedidos de renúncia como ''ficção política''
• Museu Britânico afirma que tem "conversas construtivas" com a Grécia sobre os mármores do Partenon
— No dia em que eles disseram que tomaram Aleppo, antes de vê-los, senti como se o Titanic estivesse afundando — disse ao Wall Street Journal uma mulher cristã em Aleppo que não quis ser identificada porque temia represálias do regime sírio. Mas, segundo ela, não houve saques, e as lojas e restaurantes reabriram no dia seguinte. — Todos ficaram chocados porque eles estavam nos tratando bem. Eles parecem assustadores. Eles têm exatamente a aparência que você imagina quando alguém diz que é um terrorista: barbas longas e cabelos malucos. Mas eles são simpáticos.
Comparada em seu impacto — e importância estratégica — com a tomada da segunda maior cidade do Iraque, Mossul, pelo Estado Islâmico em 2014, a queda de Aleppo — pela primeira vez em oito anos — tem sido um caso muito diferente até agora. Em um decreto publicado na segunda-feira, al-Jawlani defendeu que "na futura Síria, acreditamos que a diversidade é nossa força, não uma fraqueza". De fato, não houve relatos de massacres em Aleppo até o momento, e os rebeldes permitiram que as forças curdas cercadas saíssem ilesas.
Rompimento com extremistas
Nascido Ahmed Hussein al-Sharaa, ele adotou o nome de guerra Jawlani, uma referência às raízes de sua família nas Colinas de Golã que Israel tomou da Síria em 1967. E passou cinco anos em um campo de prisioneiros administrado pelos Estados Unidos no Iraque depois de deixar Damasco, em março de 2003, rumo a Bagdá com outros voluntários ansiosos para repelir a iminente invasão americana. Em 2011, ele voltou para casa com as malas cheias de dinheiro e, na posição de emissário do fundador do Estado Islâmico, Abu Bakr al-Baghdadi, tinha a missão de tornar o movimento extremista global. No ano seguinte, porém, rompeu com o EI e, em 2016, com a al-Qaeda.
Desde então, al-Jawlani combateu as duas organizações em campanhas sangrentas à frente do Hayat Tahrir al-Sham (HTS), força rebelde apoiada pela Turquia que na sexta-feira teve uma vitória rápida e inesperada sobre o regime de Assad na Síria. Ao fazer isso, ele afastou o HTS do movimento jihadista transnacional que está mais interessado em travar uma guerra contra os Estados Unidos e o Ocidente — e que vê as fronteiras nacionais no mundo muçulmano como uma construção artificial imposta pelos colonialistas infiéis.
— O rompimento dele e de seu grupo com o Estado Islâmico e a al-Qaeda é muito genuíno. Eles não fazem parte dessas entidades há mais tempo do que estavam com elas, e já faz basicamente oito anos e meio que eles renunciaram à jihad global — disse Aaron Zelin, membro sênior do Instituto Washington para Políticas do Oriente Próximo e autor de um livro recente sobre o HTS, ao Wall Street Journal.
Em vez disso, Jawlani transformou o HTS — que administra um estado próprio na província de Idlib, no norte da Síria, desde 2015 —em uma força bem disciplinada que se concentra diretamente na Síria, uma mistura de islamismo e nacionalismo que está mais próxima do Talibã do Afeganistão e do Hamas palestino. Em vez da bandeira do Islã, as tropas do HTS optam por lutar sob a bandeira síria que remonta à república que existia antes da revolução do Partido Baath em 1963, que acabou levando a família Assad ao poder.
— O HTS, desde a sua fundação, disse que não tem objetivos transnacionais, está focado na Síria, quer lutar na Síria, e essa tem sido a essência de sua discordância com outros grupos jihadistas — disse ao WSJ Dareen Khalifa, consultor sênior do International Crisis Group, que se encontrou com Jawlani várias vezes na Síria. — A liderança do HTS é pragmática e utilitária, e menos ideológica. Jawlani não é um clérigo, ele é um político que está pronto para fazer acordos e se compromete com muitas coisas, exceto com a luta contra o regime. Não subestime a ambição desse cara.
Prisões arbitrárias
A vitória de al-Jawlani em Aleppo coloca um homem que os EUA ainda designam como terrorista como possível candidato a governante da Síria caso o regime de Assad entre em colapso. Pode ser considerada também uma notável transformação política do tipo raramente vista na região. Para Alberto Miguel Fernandez, vice-presidente do Instituto de Pesquisa de Mídia do Oriente Médio e ex-coordenador do Departamento de Estado para comunicações de contraterrorismo, al-Jawlani e o HTS “aprenderam a jogar o jogo”.
— Eles ainda têm o que chamamos de ideologia extremista, mas não são extremistas estúpidos e são extremistas nacionalistas. Al-Jawlani sabe que precisa moderar seu tom, por exemplo, em relação às minorias, porque isso é algo que as pessoas no Ocidente jogarão na cara dele — comentou em entrevista ao WSJ.
Os EUA oferecem uma recompensa de US$ 10 milhões (R$ 60 milhões) por al-Jawlani. No entanto, Washington não têm como alvo ele ou outros comandantes importantes do HTS desde que al-Jawlani proclamou, há quase uma década, que não quer ser inimigo dos Estados Unidos. Desde o primeiro governo de Donald Trump, que negociou um acordo com o Talibã no Afeganistão, al-Jawlani e o HTS têm buscado um acordo que retire a designação de terrorista do grupo sírio.
Não está claro, porém, até que ponto a transformação de al-Jawlani é genuína e se seus apelos à moderação são projetados para acalmar outros sírios e o Ocidente, enquanto prossegue em sua busca para substituir o regime de Assad — o Talibã no Afeganistão também prometeu um governo inclusivo e maior respeito aos direitos das mulheres antes de tomar o poder em 2021, mas desde então expulsou as mulheres do local de trabalho e da educação, retornando à forma como governava antes da invasão dos EUA em 2001.
Grupos de direitos humanos acusaram o HTS de deter arbitrariamente ativistas, jornalistas e outros civis que expressaram opiniões críticas, e alegaram tortura e maus-tratos aos detidos, acusações que Jawlani nega.
— Eles passaram da jihad global para o regime local. E agora são semelhantes a muitos regimes do mundo árabe em suas tendências autoritárias — concluiu Zelin.