Sáb, 20 de Dezembro

Logo Folha de Pernambuco
Notícias

Figuras emblemáticas recriam a paternidade

Para além do laço sanguíneo, o sentido de paternidade pode ser encontrado na figura do amigo, professor ou algum orientador. Aquela figura que ajuda pessoas a encontrar um rumo

 Cerca de 400 filhos de terreiro veem em Pai Ivo um alento diante dos problemas cotidianos Cerca de 400 filhos de terreiro veem em Pai Ivo um alento diante dos problemas cotidianos - Foto: Brenda Alcântara

As histórias de um professor de artes marciais, um médico e um líder religioso se cruzam para dar um significado diferente sobre o sentido do “ser pai” dentro das convenções sociais conhecidas. A figura paterna não necessariamente vem dos laços de sangue, mas por meio de acolhimento e da identificação que influencia diretamente na formação dos saberes sociais e no caráter de uma pessoa. De acordo com o antropólogo Hugo Jesus, professor da Universidade Federal (UFPE), há uma desconstrução do papel do pai justamente pelas múltiplas referências. Desde a questão de gênero - quando o núcleo familiar é composto por dois pais ou duas mães (exercendo esse papel) - até o referencial criado pelas próprias pessoas do que representa essa figura masculina em suas vidas.

“Começamos a recriar a paternidade porque a sociedade está sempre em busca dessa figura central a partir do nosso imaginário. Então, um pai de santo, um professor, um líder político, ele termina assumindo às vezes desse pai, que não é o biológico”, ressalta Essa referência, ou ponto de partida, só foi encontrada por Alexandre Santos, na juventude, quando despertou seu interesse por aprender artes marciais. O pai, desconhecido durante toda sua vida, surgiu na figura do mestre Renato Santos, que deixou um grande legado no Taekwondo pernambucano. “Quando comecei a treinar taekwondo, já sabia que queria desenvolver um projeto social com aulas gratuitas para ajudar crianças carentes. Sempre vi o mestre Renato como um grande educador. Ele dizia que, se hoje está difícil, amanhã poderia ser diferente”, conta. E foi seguindo essas orientações que o professor Alexandre assumiu para si a missão de ser muito mais que um mestre, ser a figura paterna para centenas de crianças. São 34 anos de dedicação ao esporte, com treinos realizados pelo projeto social Academia Disciplina. O incentivo à prática do taekwondo envolve as comunidades: Alto do Capitão, Dois Unidos e Santo Amaro.

Atualmente, o projeto, que possui parceria com a Prefeitura do Recife, e já atendeu 250 atletas que se encontravam em situação de vulnerabilidade, tem cerca de 60 alunos, sendo oito classificados como faixa preta e que participam de disputas nacionais. Foi graças à proteção paternal dada pelo professor de taekwondo que o estudante Estevão Victor,18 anos, não desistiu do esporte e almejou uma vida melhor.

“Conheci ele aos 11 anos e vi uma pessoa que estava ali para me apoiar. Sabia que não iria deixar fazer o que eu quisesse, mas iria me orientar para não seguir caminhos errados. Já cheguei a pensar em desistir por influência de más companhias, mas ele não deixou. Disse que se cheguei até aqui, poderia crescer muito mais”, afirma o jovem, que não teve o pai de sangue presente. O relato dele é bem semelhante ao de outros alunos, que enfrentam essa ausência. “Deus dá uma missão para cada pessoa e temos que abraçá-la. Se plantarmos dez sementes agora, teremos dez árvores lá na frente, mas sei que planto muito mais do que isso”, argumenta o mestre com a voz embargada e a emoção visível.

É nas dificuldades do dia a dia, na busca por patrocínio para que os meninos participem de campeonatos brasileiros, que o professor ganha forças para continuar com o trabalho e o dom de ser pai. “Sempre que penso em desistir, chega uma criança na academia. Chega um filho para eu cuidar.” A experiência paterna é muito ampla e transformadora, segundo o antropólogo Hugo Menezes. E essa visão ultrapassa as barreiras emocionais. Ela afeta toda a construção social na vida do ser humano.

“Ser escolhido e entendido como um pai é muito forte, algo único e pulsante. Não é só o lado afetivo que está em questão, mas o papel social que se faz necessário, principalmente, nas comunidades mais carentes onde o poder público não dá assistência e a criminalidade é alta”, explica. Uma realidade que não é condicionante a Pernambuco, mas em todo o País nas localidades periféricas mais carentes, é muito comum ter essa paternidade ausente. Por isso, essa relação “pai e filho” é colocada de forma tão importante.

Para alívio da alma

No Terreiro de Xambá, localizado no Portão de Gelo, em São Benedito, no município de Olinda, é o DNA religioso que possui forte impacto na vida de quem frequenta o espaço. São cerca de 400 filhos de terreiro que veem em Adeildo Paraíso da Silva, conhecido como Pai Ivo de Xambá, 65, não apenas a força religiosa e política para manter suas tradições vivas, mas um alento diante dos problemas do cotidiano. “A função de líder acaba tendo esse papel de pai, pois assumimos essa função de dar conselhos, mostrar o equilíbrio da vida. E isso é algo central na matriz de religião africana, esse acolhimento familiar”, explica.

Pai Ivo não exerce esse papel apenas pela condicionante hierárquica do Candomblé, mas pelo apelo emocional e ligação que estabelece com a comunidade. Ele até cita um fato engraçado, de pessoas mais velhas o verem como um segundo pai. “A nossa religião é uma grande família e nas estruturas mais tradicionais, muito comum no século 20, existe aquela postura de pedir a benção aos mais velhos até chegar à figura maior, que é o pai, e no nosso caso o babalorixá. Uma senhora feito dona Zefinha, 92, sempre vem me pedir a benção. É de uma magia e respeito enorme.” O pai de santo deu lugar à tradicional figura paterna na vida de Gledhson José, 34, quando ele ainda era adolescente.

Na dúvida se cursaria Direito ou História na época, foram os conselhos e apoio de Ivo que o fizeram tomar decisões importantes. “Lembro que fui um pouco rebelde quanto a isso. Queria tentar conciliar os dois, mas depois optei por fazer Direito. Ele sempre se fez presente na minha vida, me dando apoio, falando sobre o melhor caminho”, comenta. “É evidente que a presença do pai de santo se estende nas outras relações do dia a dia, seja na forma de conselho para que você possa ter uma visão diferente diante de algum problema ou decisão a ser tomada. A figura do pai de santo traz esse auxílio. Mas, ele fez brotar essa ligação paterna quando comecei a pensar sobre como funciona a sociedade que estamos inseridos.”

E criação inexistente do pai se faz repetir com esses personagens. Tanto Pai Ivo quanto Gledhson viram nas suas mães o poder de exercer dois papéis. O que volta para um dos fatores que levaram à desconstrução da paternidade em tempos modernos. “A busca por essa figura central, ela não necessariamente precisa ser masculina, apesar do nosso imaginário acabar reportando essa questão para o homem. Isso é algo ultrapassado. A criança não precisa crescer com a presença feminina e masculina definidas. Essas múltiplas referências não vão fazer ela crescer com alguma deficiência emocional, não vão impedi-la de ser um cidadão socialmente bem colocado”, esclarece o professor Hugo Menezes.

Vocação clínica

Enxergar seus alunos como futuros profissionais qualificados não era o bastante para o clínico geral Francisco José Trindade Barretto, 77, conhecido como Chicão. Ele também vê os jovens médicos que fazem Residência de Clínica Médica do Hospital Real Português (RHP) como se fossem seus filhos mais novos. E tem sido assim desde que começou a lecionar na área de medicina.

“Sempre gostei da área de educação e essa postura paterna não foi algo dirigido, mas eu diria que é uma vocação. Sempre trabalhei com o sentido de família, de querer que esses estudantes de residência se tornassem ótimos profissionais e que pudessem ter uma boa formação.” O Dia dos Pais, inclusive, passou a ter uma ligação especial. “Cuidar de jovens, e contribuir para um mundo novo para eles, me deixa muito realizado. Quem nasceu para isso tem que se apegar a essa missão”, cita.

Todo esse amor tem o reconhecimento de quem pode aprender um pouco sobre uma das profissões mais importantes para a sociedade. A médica Maria Tereza Guerra, que fez residência no RHP, em 2015, tem uma profunda admiração e carinho pela figura de doutor Chicão. “Ter trabalhado e convivido com ele foi algo que transformou a residência em todos os aspectos. Foi uma experiência de aprendizado extraordinário não só do ponto de vista do médico, mas do lado emocional, humano e filosófico“, avalia.

Veja também

Newsletter