A fé não precisa de bancada
A decisão da Câmara dos Deputados de aprovar o regime de urgência para o projeto que cria uma “bancada cristã” é mais do que um erro político: é uma afronta ao Estado laico e à própria Constituição de 1988. O texto, proposto por deputados que se dizem representantes das frentes evangélica e católica, quer dar voz e voto especiais a um grupo religioso dentro do Congresso. É como se a Casa que deveria defender a neutralidade do Estado diante das crenças abrisse mão desse papel, transformando a fé em instrumento de disputa eleitoral e em plataforma de poder.
De acordo com o último Censo (2022), o Brasil é um país de maioria cristã, sim. Mas também é um país plural, com religiões afro-brasileiras, indígenas, judaicas, islâmicas, espíritas e uma parcela crescente de pessoas sem religião. Foi justamente para garantir essa convivência que a Constituição definiu a laicidade como um princípio essencial da democracia. Nenhuma fé, por maior que seja, pode se sobrepor às outras nem usar o Estado em benefício próprio. Ao tentar criar uma “bancada cristã”, o Congresso transmite a ideia de que alguns brasileiros valem mais do que outros, o que fere diretamente o princípio da igualdade e o equilíbrio entre crença e cidadania.
O argumento de que “80% da população é cristã” distorce o que é democracia. Democracia não é contagem de fiéis; é garantia de direitos iguais, de liberdade e respeito. O Estado laico não combate a religião; ele a protege, assegurando espaço e dignidade a todas as expressões de fé, inclusive o direito de não professar nenhuma. Misturar fé com poder político é um erro antigo, que já causou intolerância, perseguições e guerras. A separação entre religião e política existe justamente para impedir que o sagrado se torne instrumento de dominação ou moeda de barganha.
A filósofa Marilena Chauí lembra que, no Brasil, a religião muitas vezes foi usada por grupos poderosos para impor padrões morais e conservar privilégios. Quando a fé vira bloco político, ela deixa de ser espiritual e passa a servir ao controle. O pensador Raimon Panikkar também alertava: “O sagrado não precisa do poder; quando o busca, perde sua pureza.” A fé verdadeira é livre e íntima, pertence à consciência e não ao palanque. Quando entra na arena partidária, perde o sentido e trai sua própria essência.
Criar uma bancada cristã não fortalece o cristianismo, enfraquece a democracia. Abre espaço para que outras religiões também queiram seus blocos, dividindo o país por fé e não por ideias. O Congresso, que deveria proteger a Constituição, age contra ela. O Brasil precisa de ética, não de dogma. De princípios republicanos, não de altares.
Num país de tantas fés, o verdadeiro ato de fé é acreditar na convivência, no respeito e na liberdade. O Estado laico não ameaça a religião; é o que garante que todas possam existir em paz, com dignidade, sem precisar de bancada para serem respeitadas.
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