A Somália brasileira: riqueza, poder e a decadência de um Nordeste esquecido
Há setenta anos, o Alto Pajeú, especialmente em Itapetim, Tabira e Santa Cruz da Baixa Verde, era uma terra de fartura, de produção agrícola pujante e de esperança concreta. Cerca de onze mil hectares de terra estavam cobertos de cana-de-açúcar, o suficiente para abastecer uma destilaria de álcool e transformar a região em um polo agroindustrial do Nordeste. Era possível. Era real. Faltou apenas o que sempre faltou: visão, apoio técnico e vontade política.
Se o governo federal tivesse tido interesse em orientar, financiar e organizar cooperativas, teríamos nos tornado uma economia autossustentável. Mas isso não aconteceu. Ficamos sozinhos, com nosso esforço e alguns engenhos em ruínas.
Na cidade de Tabira, existiam mais de duzentos engenhos de produção de mel, alfinim e rapadura. A indústria de doces florescia em Itapetim, São José do Egito Afogados da Ingazeira e outras cidades. Era um tempo em que o sertanejo não apenas sobrevivia – produzia, empreendia, exportava.
Depois da cana veio o ciclo do ouro branco: o algodão. Tabira, eu vi, não me contaram – era um mar branco. Chegavam a sair trinta, quarenta caminhões de algodão carregados rumo às fábricas do coronel Chico Heráclito, em Limoeiro. A fibra era vendida para fora do estado e para outros países. Era riqueza sólida.
Mas surgiu uma praga: a cigarrinha. E com ela, a devastação. O governo mais uma vez se mostrou ausente. Nenhuma pesquisa agronômica, nenhuma contenção, nenhum plano de recuperação.
A economia, ainda viva, se reinventou com o agave, também conhecido como sisal. Uma planta de fibra nobre, exportada para a Espanha e a Itália. Os artesãos faziam cestas, esteiras, e vendiam nas feiras livres. Mas o agave tem uma característica: onde se planta, mais nada cresce. A terra se esgota. Ainda assim, havia uma riqueza ignorada: a batata do agave, queimada como lixo pelo agricultor, poderia ter sido utilizada para produzir uma bebida semelhante à tequila, como fazem os mexicanos. O que o México fez com o agave, nós desperdiçamos. Faltou conhecimento, incentivo, orientação.
Hoje restam ruínas. Ainda existe a fábrica de cachaça de Triunfo, que sobrevive e exporta. Mas outros, como o alambique Madeira do Norte, em Tabira, fecharam as portas. Desativado, hoje é apenas um símbolo da decadência que a negligência governamental construiu.
E quando o inverno chega, como agora, olhamos ao redor e não vemos um hectare de milho, de feijão, de mandioca, de nada. Nada é produzido para o mercado nacional. Nada se acrescenta ao PIB brasileiro. Somos, hoje, um fardo para o país. Um povo digno, trabalhador, mas que o governo transformou em refém da dependência institucionalizada.
O que vemos hoje no Nordeste é a consagração de uma política de esmolas. O Bolsa Família passou a ser interpretado como aposentadoria por muitos agricultores. A região, antes produtiva, virou território de aposentados, de programas assistenciais e de funcionalismo público. A pobreza é cultivada e mantida porque tem valor político. Alimenta votos. Garante eleições.
E por que isso perdura? Porque o Nordeste virou um mercado persa. Aqui, no Alto Pajeú, temos homens e mulheres competentes, sérios, preparados, que poderiam ocupar cadeiras na Assembleia Legislativa, na Câmara Federal, no Senado. Mas não se lançam. Não disputam. Porque sabem que não vencem uma eleição sem dinheiro, sem compra de votos, sem compactuar com a sujeira política que se instalou. Ganha quem compra mais. Ganha quem distribui saco de cimento, telha, tijolo, promessa.
A política virou um balcão de feira. Um escambo moderno de migalhas por dignidade. E o povo, cansado, se acostumou. Espera os políticos de fora, os forasteiros que aparecem de quatro em quatro anos com a sacola cheia de promessas e o carro cheio de dinheiro. Compram votos, somem por quatro anos, e voltam para repetir o ciclo da vergonha. E o povo, em sua grande maioria, aceita. Porque a fome não espera. Porque a miséria foi institucionalizada. Porque o Estado alimenta a pobreza para colher votos.
É preciso dizer: isso é uma vergonha. É uma tragédia moral. Uma decadência não apenas econômica, mas ética. E poucos têm coragem de dizer. Mas é a verdade.
Essa narrativa não é um lamento vazio. É um grito. Uma denúncia. Uma lembrança de que já fomos grandes. Que já produzimos algodão, álcool, doces, cachaça, fibras. E que poderíamos ser muito mais. Mas hoje somos chamados, por mim, de a Somália brasileira: uma terra rica transformada em pobre, uma gente forte transformada em dependente, e uma cultura política transformada em comércio de consciência.
Ainda há tempo. Ainda existe esperança. Mas é preciso romper com o ciclo de abandono e com o sistema que perpetua a miséria como moeda de troca. O futuro não está nas esmolas. O futuro está nas universidades, nas fábricas, no campo irrigado, na pesquisa, na independência.
O Nordeste não é incapaz. O Nordeste foi sabotado. Que o Brasil nos enxergue com respeito, não com pena. E que um dia possamos dizer, com orgulho, que retomamos o caminho da dignidade.
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