Antônio Maria: bilhete para Maísa (4)
Maísa Matarazzo. Egressa de família quatrocentona paulista. Decidiu ser cantora no final dos anos 50. Voz madura, moderna, na linha da de Julie London. Viveu, cantou, fez sucesso. Reinaugurou a vida a seu modo. Tanto cantou e viveu que mergulhou em excessos e riscos.
Maria, compassivo como sempre, escreveu um bilhete para Maísa. De Maria para Maísa. Maísa o recebeu. E se guardou.
Aqui vão trechos do coração solidário de Maria para Maísa:
“Minha prezada Maísa. Sabe você com que cores se costuma pintar os maus momentos e as aflições alheias. Ontem, por exemplo, me disseram que você, num só desespero, abrira o gás do banheiro e ingerira dose violenta de comprimidos tóxicos. (...).
Hoje, graças a Deus, os noticiários da imprensa contaram a história direito, explicando que você apenas tomara um pileque maior e alguns comprimidos além. Contra os pileques, não tenho nada a reclamar. Também os tomo e só Cristo sabe com que desgosto lamento os erros a que eles me levam. Mas no beber há um mistério, uma sabedoria e, além disso, um recolhimento que nos leva sempre aos copos com independência e estado de graça”.
Continua Maria: “Mas, minha prezada Maísa, queria conversar sobre a morte, dentro da verdade irrefutável de que a vida, mesmo quando não chega a ser uma delícia, é uma fascinante experiência de luta e coragem, bela não só nos momentos de intensa felicidade, como, e mais ainda, nos transes dolorosos, de que saímos mais livres e fortes”.
Prossegue Maria: “O suicídio contém uma desforra e este é seu lado fascinante. Mas o suicídio contém a morte e este é seu defeito irreparável. Há muito o que ver e sentir. Há muito o que amar ! Em mim e em meus semelhantes intranquilos, haverá, um dia, aquela manhã clara e azul e, com os olhos da alma sossegada, veremos toda a beleza da rosa, toda a luz do lago duro e prisioneiro, o sopro de manhã cheia de pássaros, o convite do amor no ser que passa”.
Andante e alegro, Maria: “Há uma série de acontecimentos recentes, em minha vida, que só por eles jamais cometeria a ingratidão de matar-me. Poderia enumerar alguns: o caminho de Versalhes, a descida do Tejo, a estrada de Teresópolis, a noite que acabo de dormir, pesadamente”.
Presto, Maria: “Minha jovem amiga, abra uma janela de sua casa - a que dá para o mar ou para a montanha. Procure o mundo e dê-se por perdida. Viva, sem a nervosia de procurar-se a si mesma, porque cada um de nós é um perdido, um ilustre perdido, na humanidade vária e numerosa. Viva, que no fim dá certo.
É o seu amigo, Antônio Maria.
05.06.1958.”
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