Bom dia, Barata
As manhãs no Recife são únicas, como Cícero Dias viu o mundo, e ele começava aqui, a luz do recife é singular e, por isso, sempre me faz acordar distintamente dos outros lugares no mundo. Gosto dos dias, mais às noites, apesar de nesses tempos todos os gatos serem pardos, até mesmo em plena manhã.
Mas o fato é que o ato de acordar no Recife, em minha cama, sempre me trouxe prazer e alegria, mesmo nos dias mais atribulados. Sempre acordo feliz, para protesto de Lucila e minhas filhas.
Perceber no horizonte a mudança da posição da Terra traz-me sempre as diferenças entre os invernos e as primaveras. E foi numa dessas que passei por uma situação, no mínimo estranha. Tenho meus rituais ao acordar, e um deles é o café, cuja relação já deve ter sido dita por mim em algum escrito por aí.
Acordar, deixar que ele fumegue e traga o incenso do novo dia perfuma a existência e nos aproxima olfativamente de nossos instintos atávicos. Quando ele pronto, basta o primeiro gole para que o corpo e o espírito se integrem novamente, após uma noite de separação entre o consciente e o inconsciente.
Dito isso, vamos para a história propriamente dita. Após toda essa ritualística prazerosa, ao menos para mim também, tomar banho, sempre frio, e mudar de roupa, completam a minha indumentária espiritual para qualquer dia. E isso não é de agora, sempre gostei do silêncio das manhãs, de acordar primeiro para tatear o novo dia com essas mesmas sensações que nunca são as mesmas, mas sempre se complementam como um novo mosaico a deixar, paradoxalmente, o mesmo desenho de uma vida rotineira distinta.
Talvez por isso não entenda a razão das pessoas em convívio condominial não darem bom dia. Pois bem, minha vizinha, uma em específico, ela e o marido, não dão bom dia, nunca deram.
Certo dia, após todo esse meu processo rotineiro, entrei no elevador e me deparei com a vizinha. Moramos em andar alto e ela acima de mim, eis que ela, naquele dia, já descia acompanhada. Duas baratas quase acima da cabeça, no teto do elevador, pareciam deleitar-se com o seu companheiro de então, em plena luz do dia, em posição que até Sade teria dificuldades em descrever.
Bom dia, dado, e não respondido, como de costume, passou a gerar em mim uma certa confusão. Como agir naquela situação? Será que dizer para a silenciosa vizinha o que se passava acima de sua cabeça seria a melhor solução? Como não tenho medo de barata, o que se desenrolava no elevador não me apoquentava, diria até que me distraía, já que não tenho o hábito de não ficar com o celular na mão para distrair o tempo das viagens verticais condominiais.
O fato é que, enquanto descia, uma certa afeição pelo casal em romance me fez entender que o melhor seria deixá-los em paz, pois qualquer anúncio da cena poderia desencadear coisas terríveis. Fiquei imaginando se a primeira voz daquela vizinha a se dirigir a mim seria um grito histérico, daqueles que poderiam implicar qualquer um, seja lá no que for.
Ficar em silêncio foi a estratégia usada, e passar a viagem toda a olhar para o teto, como quem ora para algum ser transcendental foi minha solução, enquanto a silenciosa vizinha continuava ali, inerte e sem resposta ao meu bom dia.
E observem vocês, não sei se sabem, mas os cálculos da origem do universo, são de mais ou menos 13,8 bilhões de anos, a partir daí iniciou-se o drama da matéria. Calcula-se ainda que a vida, em sua forma mais primitiva, surgiu a pouco mais de 3,5 bilhões de anos atrás, portanto, certamente, a Eva dos seres biológicos deve ter sido alguma bactéria, parente mais próxima da barata do que nós, razão pela qual a minha atenção deveria, realmente, ficar centrada no casal de baratas e não na vizinha silenciosa, um originária da espécie que surgiu há cerca de 300 mil anos atrás, somente, que talvez não tenha herdado o córtex frontal, como a maioria de nós que damos bom dia aos outros, principalmente vizinhos.
Por isso, a decisão foi mais que acertada. Já quase chegando ao térreo, notei que a espécime “vizinha silenciosa” por certo deveria ter esquecido algo, pois voltara a apertar o botão de seu andar. Diante disso não me fiz de rogado, jamais diria “até mais” ou “até breve” para alguém incapaz de um bom dia.
O elevador chegou, a porta se abriu. Olhei para o teto e falei sem fitar o rosto da cidadã (...)“bom dia casal maravilhoso, que tenham um dia repleto de prazeres”. Foi quando a vizinha olhou meu rosto sem entender absolutamente nada. Continuei a fitar o teto, enquanto o casal de barata, como que a me cumprimentar, passou a voar ao redor da iluminação do elevador. A porta se fechou, o elevador subiu e fui trabalhar.
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