Nara Leão, cinzas da quarta-feira (2)
A Marcha da Quarta-Feira de Cinzas, de autoria de Vinicius de Moraes e Carlinhos Lyra, é uma história épica. Em 1963, Vinicius tinha escrito, premonitoriamente, os seguintes versos: “Acabou nosso carnaval, ninguém ouve cantar canções, ninguém passa mais brincando feliz, E nos corações, Saudades e cinzas foi o que restou. Pelas ruas o que se vê, É uma gente que nem se vê, que nem se sorri. Se beija e se abraça, E sai caminhando, dançando e cantando cantigas de amor. E, no entanto, é preciso cantar, mais que nunca é preciso cantar, É preciso cantar e alegrar a cidade”.
Meses depois, em abril de 1964, Carlinhos Lyra foi à casa do poeta, em Ipanema. Lá, juntos, musicaram a letra da canção. O passo seguinte foi o dono da gravadora Elenco, Aloysio de Oliveira, entregar os originais ao experiente arranjador Lindolfo Gaya. Para que introduzisse orquestração moderna, bossanovista. Com a participação de Nara, ao violão. Encantando com a bela estranheza de sua voz suave.
Nascia, ali, outra e definitiva versão da Marcha da Quarta-feira de Cinzas. Ela continuava, nostálgica, marcha-rancho. Com andamento marcado e lento por percussão tradicional. E uma introdução de trombone. Para completar, a voz coloquial e segura de Nara. O maestro Gaya produziu arranjo quase minimalista. Cordas com sutis desenhos melódicos. E um coro feminino. Delicadeza, como pedia a bossa nova (conforme Hugo Sukman, Editora Cobogó).
Dois anos antes, Zé Kéti anunciou que Nara gravaria um samba de Cartola: O sol nascerá. A notícia impactou o meio musical. Ao lado da informação de que Cartola e dona Zica abririam seu restaurante no centro da cidade: o Zicartola. Novo endereço carioca do samba. Em entrevista, Cartola disse que faltava muito para ser realizado. Pois “na mocidade não pensava em quase nada, fazendo loucuras. E, na velhice, é duro recuperar o tempo perdido”. O samba foi gravado com Nara que tinha 21 anos. Realçando o brilho de Cartola que contava 55 anos. Dizia assim: “A sorrir, eu pretendo levar a vida, pois, chorando, eu vi a mocidade perdida”.
Em 1966, ameaçada de prisão, Nara recebeu apoio público do poeta Carlos Drummond de Andrade. Numa de suas crônicas, publicadas no Jornal do Brasil, ele escreveu:
“Meu honrado marechal, Dirigente da nação
Venho fazer-lhe um apelo, Não prenda Nara Leão
A menina disse coisas, De causa extremação?
Pois a voz de uma garota abala a revolução?
Será que ela tem na fala, Mais do que charme, canhão?
Ou pensam que, pelo nome, Em vez de Nara, é leão?”
Esse jeito de ser, brasileiro, cordial, não de simpatia, mas de cordis, coração, está certificado. Nas raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Na casa grande e na senzala de Gilberto Freyre. No indigenismo fraterno de Darcy Ribeiro. As certidões foram emitidas nos acordes do piano de Villa Lobos. E no saxofone de Pixinguinha. Em 8 de fevereiro de 1964, um repórter perguntou a Tom Jobim:
- O que é bossa, Tom?
Tomzinho, como dizia Vinicius, do alto de suas mangueiras e sapotizeiros, respondeu:
- Só pode ser Zé Kéti.
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