Sáb, 20 de Dezembro

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opinião

Parlamentares querem usar a fé como escudo 

A liberdade religiosa não pode autorizar o discurso de ódio. Mas, infelizmente, avança na Câmara dos Deputados um projeto de lei que, sob o discurso de proteger a liberdade religiosa, levanta um alerta sério sobre os limites entre fé, discurso público e direitos fundamentais. A proposta deixa mais duras as penas para crimes contra cultos religiosos, o que é importante, legítimo e respeitando a Constituição. O problema está no acréscimo feito ao texto, um dispositivo que protege líderes religiosos de punição por falas discriminatórias feitas durante pregações.

Na prática, o projeto cria uma proteção legal para discursos racistas e homofóbicos, desde que sejam apresentados como "expressão da fé". É nesse ponto que a iniciativa deixa de defender a liberdade religiosa e passa a abrir espaço para a normalização da violência.


Nenhum direito é absoluto em uma sociedade democrática. O exercício de qualquer garantia individual encontra limite quando se converte em violência contra o outro. Isso inclui a prática religiosa. Quando ideias discriminatórias atingem grupos sociais de forma agressiva, produzindo humilhação, exclusão e desumanização, deixa-se o campo da opinião ou da crença pessoal e entra-se no terreno da violência simbólica, com efeitos reais na vida social.

A religião não está fora da sociedade nem das relações de poder. Ela pode ser fonte de acolhimento, cuidado e sentido, mas também pode ser usada para justificar exclusões. Por isso, não pode ser colocada acima das leis nem tratada como um espaço sem responsabilidade pública.

A Constituição brasileira garante a liberdade de crença, mas também afirma que todos são iguais perante a lei. O racismo é crime grave e inaceitável em qualquer circunstância e a dignidade do ser humano é um dos pilares do Estado brasileiro. Nenhum direito pode ser usado para anular outro. Criar uma exceção penal para líderes religiosos viola esse princípio básico e coloca alguns cidadãos acima da lei.

Não é a primeira vez que o cristianismo se vê diante de uma escolha entre proteger estruturas de poder ou defender pessoas reais. Na América Latina, a Teologia da Libertação lembrou que a fé cristã só faz sentido quando está ao lado dos pobres, dos discriminados e de quem sofre violência. Ao afirmar que o Evangelho não pode ser separado da dignidade humana, essa tradição alertou para a possibilidade de transformar a religião em instrumento de exclusão. É essa lógica que reaparece quando leis tentam proteger discursos que machucam o outro em nome da fé.

Esse desvio não é novo. Como alertava o filósofo e escritor Jean-Jacques Rousseau, na sua obra Contrato Social,  uma sociedade só permanece livre quando a lei vale para todos. Ao deixar de expressar o bem comum e passar a atender interesses específicos, a legislação compromete a base da igualdade que sustenta a vida democrática. Ao criar privilégios baseados na identidade religiosa, o Estado deixa de agir como mediador e passa a legitimar desigualdades.

Também é impossível ignorar o conflito moral que isso provoca. Muitos dos que se apresentam como cristãos afirmam seguir uma mensagem baseada no amor ao próximo e na defesa dos mais vulneráveis. No entanto, ao apoiar leis que minimizam crimes como racismo e homofobia, caminham na direção oposta desse ensinamento. A fé passa a ser usada como instrumento para camuflar a violência, e não para combatê-la.

É importante deixar claro, não se trata de criminalizar a religião, a Bíblia ou a pregação religiosa. Mas afirmar que a religião não pode ser usada como arma nem como escudo para justificar crimes. Discurso religioso não pode servir para atacar, humilhar ou negar a dignidade de ninguém.

A democracia brasileira não exige que se escolha entre fé e direitos humanos, nem permite que um anule o outro.
A liberdade religiosa não é licença para ferir. Ela termina exatamente onde começa a violência contra o outro.

Quando a religião deixa de ser espaço de cuidado e passa a ser usada como proteção para o preconceito, o que está sendo defendido não é a fé. É o abuso.


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