Segurança 171, violência 0800 e 100% de caos social
Como cronista que precisa se manter atento à realidade social brasileira, penso que já estava no tempo de dar asas para uma reflexão inquietante. De fato, necessito tratar, com maior profundidade, um tema que parece incomodar o cotidiano da maioria da população brasileira: a violência. Infelizmente, um fenômeno social generalizado e onipresente, tal e qual a incapacidade de reação e combate assumida pelos entes envolvidos com a segurança pública.
Assim, começo essa oportuna reflexão com uma provocação explícita, que dá todo sentido ao título deste texto. O jogo com os números absolutos e também com o relativo aqui exposto, não trata apenas de uma mera questão quantitativa. É também uma insinuação qualitativa, do quanto minha intolerância com a situação consegue reagir, mesmo diante da tragédia, com uma dose sutil de humor. Desse modo, por maior que a desgraça possa estar configurada, sempre há um breve espaço para que a gente não se entregue e daí pratique, pelo menos em textos, uma certa descontração.
Dito isso, confesso que não há como desconsiderar os atos trágicos de um cotidiano recente, que bem explicam a realidade de violência que macula nossa sociedade. Enumero-os, com situações gerais e até fatos específicos, a conferir.
De pronto, já destaco o absurdo da violência diária contra as mulheres, que mesmo diante da retaguarda protetora de uma lei específica (Maria da Penha), ainda nos condiciona a assistir à repetição de casos como o daquela mulher potiguar, submetida ao abuso de uma sequência de socos no rosto. Ou ainda, o caso da menina de 11 anos, vitimada pela agressão física de 5 colegas de escola, triste fato ocorrido aqui no sertão de PE;
Destaco, também, em complemento à referência de violência diária sofrida por pessoas do grupo LGBTQI+, o espancamento covarde sofrido por uma mulher trans, que se deu dias atrás em Belo Horizonte. Infelizmente, fato consumado com o registro de morte caracterizada pela extrema brutalidade.
Tão absurdo quanto esses, cabe destaque outro caso que se deu, no último final de semana, na cidade de Guarulhos/SP, quando um empresário e pai de duas crianças foi, cruelmente, esmurrado por um cidadão dito "segurança", na porta de uma adega. O fato ganhou um contorno assombroso, que me pareceu ter de expor até onde pode-se chegar ao limite da maldade humana. Isso por conta do abandono que se reservou àquela vítima agonizante, que durante horas aguardou por um socorro tardio. O desfecho foi mesmo uma morte torturante, que foi resultante da falta de humanidade expressa pela desassistência.
Somente por esses exemplos, parece-me que a violência está mesmo normalizada num ambiente surreal. Fico aqui a refletir sobre a extensão desse universo selvagem, que se tornou o cotidiano do nosso mundo, em pleno 1/4 de século XXI. Vive-se no embalo de uma contradição, na qual as barbaridades de cérebros insanos afetados pela violência, já convivem com o (ab)uso de uma nova inteligência, que extrapola seu espaço natural, embora que a engenhosidade humana tenha lhe dado ares artificiais. Enfim, são consequências de exercícios mentais ocupados com a missão de dar outro sentido de atendimento à sociedade.
Num mundo que assim se colocaria como evoluído, justo por avanços desse naipe, que respostas podem fazer o mínimo sentido lógico, quando o "modus sapiens" se rende a um gênero, que abusa da força física e da brutalidade para agredir mulheres? Até parece que muitos homens agem numa estúpida motivação de realizarem desejos infames e inqualificáveis, exatamente, por se sentirem donos do destino de suas companheiras.
Ou mesmo, de contarem com elas como se fossem extensões de suas posses. Noutra direção, o que levam humanos extravasarem seus ódios homofóbicos, agindo pelo extremo de procurar eliminá-los por um falso conceito de conduta moral? E, na sequência dessa pegada, por que meninos adolescentes já reagem com agressões similares, até com o uso de meios de violência mortal, perante meninas que só querem uma mera amizade na escola? O que justifica um segurança não só agredir, mortalmente, um cliente do estabelecimento para o qual trabalha, quando ignora a dor do agredido, esconde o corpo em sangue da sua vítima e ainda tenta impedir o seu socorro iminente?
Tudo isso representa agressões e mortes que só revelam a extensão do caos social. A banda racional e consciente da sociedade carece da urgência de se rever os erros e enfrentar o problema de um modo mais punitivo. Do jeito que se move hoje, estimulada por uma violência despertada pelo bel prazer de quem a pratica, lamento afirmar que nossa sociedade está falida nos seus princípios básicos de altruísmo, humanismo e solidariedade. De fato, vivemos acovardados pela tragédia do egoísmo, da selvageria e da postura do cada um por si. Isso tem-se efetivado, porque o lado violento que existe em cada um de nós, parece estar robusto e bem nutrido, posto que não foi controlado pela dose devida de racionalidade.
O individualismo narcisista despertado mesmo que, involuntariamente, pelas consequências de um culto exagerado ao corpo, de um modo tal que supera um melhor preparo das mentes, faz com que o sentido altruísta seja algo em extinção. Na linha controversa da vida, entre o sim e o não, o silêncio e o som, há o embate discreto entre o físico e a mente. Incrível, mas a musculatura que desenvolve os glúteos, parece agora mais essencial, do que o esforço para fortalecer o cérebro. Está consagrado o emergir da vitória estética, onde a emoção de se sentir forte e saudável ignora a razão de se valorizar ainda mais o equilíbrio mental, justo quem é capaz de controlar os impulsos.
O que tem a violência com isso? Absolutamente, tudo. Afinal, na hora do embate, o metabolismo, visto como uma certa "química", faz o recurso à força física superar o equilíbrio que, certamente, faz por realçar um viés da inteligência emocional. Pelo menos, naquela parte pacifista, que pode frear os impulsos da escala de violência.
Para encerrar, preciso explicar sobre meu recurso aos números. Bem, o artigo 171 do Código Penal Brasileiro, é aquele que define o crime de estelionato. Tornou-se uma espécie de gíria, para associar este número à astúcia de certos brasileiros, justo aqueles que vivem para enganar a sociedade com seus golpes e trapaças. Por sua vez, o 0800 foi algo instituído para iniciar as chamadas telefônicas gratuitas. Virou termo popular para se recorrer a respeito de tudo que não seja cobrado, que tenha, enfim, gratuidade.
Com tais conceitos em voga, reforço que, nesse meu enredo, a segurança pública deste país é mesmo um tremendo 171. Ela faz de conta que acontece. E, assim, tenta fomentar em mim e em tantos outros cidadãos a crença na efetividade de um modelo, que tem-se apresentado inapropriado. Ou então, serve de apoio a uma tese hipócrita, na qual a gente segue com o máximo de tolerância, fazendo-se valer daquele famoso adágio popular, meio masoquista, do tipo "me engana, que eu gosto". Em qualquer que seja essa aposta, o fato consequente é que a violência só tende a crescer, torna-se onipresente e passa dos limites reais de tolerância humana. De tão surreal ou absurda, ela se revela como uma situação normal, gratuita. Como um tipico quadro de 0800 na veia.
A plenitude de todo esse desconforto tem ainda sua expressão relativa plena. É a prova inconteste de que se vive hoje 100% envolvido com a decadência e o caos de uma sociedade atônita e incrédula. Assim, ao desafio de uma educação que compromete o futuro, de um saneamento básico que me leva a crer que parte da miséria ainda resiste por aqui, trago agora à reflexão de cronista, o caos social manifesto por uma violência 0800 e uma proposta de segurança pública que tem cara de 171. Ou seja, sigo 100% seguro de que a sociedade ainda sobrevive à mercê de sua decadência, sobretudo, quando não se compromete com a revisão desses números.
O racionalismo que ainda nos resta como bálsamo, precisa perceber que, quando o tempo bate à porta, é essencial se levar em conta que a resposta aos males ainda urge. Violência igual será continuar seguindo como agentes do 171, tolerante com as barbaridades dessa violência 0800. É de uma força contrária a esse "estado de coisas" tão malévolo, que o Brasil tanto carece.
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