Sáb, 13 de Dezembro

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opinião

STF, ética e autoridade moral: uma exigência republicana

A autoridade de uma corte constitucional não se esgota na força jurídica de suas decisões. Ela repousa, talvez de modo ainda mais decisivo, na confiança pública de que o poder de julgar é exercido com distância, sobriedade e autocontenção. Quando essa confiança se fragiliza, não é apenas a imagem de um magistrado que se deteriora; é a própria ideia de jurisdição constitucional que sofre abalos. É nesse plano institucional — e não moralista — que deve ser compreendida a proposta do ministro Edson Fachin de instituir um código de ética para o Supremo Tribunal Federal.


O debate brasileiro frequentemente incorre em um equívoco conceitual recorrente: tratar regras éticas como ameaça à independência judicial. Trata-se de uma confusão elementar entre liberdade e ausência de limites. Em democracias constitucionais maduras, independência não é licença; é responsabilidade qualificada. O juiz constitucional exerce poder máximo, sem instância política de revisão. Por isso mesmo, aceita limites mais severos à sua conduta pública e privada do que aqueles impostos a outros agentes estatais.


O modelo alemão ilustra esse ponto com clareza. O Tribunal Constitucional Federal da Alemanha adotou diretrizes de conduta autoimpostas que não operam como um código disciplinar clássico, mas como um pacto institucional de autocontenção. O critério não se limita à inexistência de conflitos de interesse reais. Vai além: exige que o juiz evite situações que possam comprometer a aparência de imparcialidade aos olhos de um observador razoável. A lógica é simples e rigorosa: a confiança pública é um ativo constitucional, e cabe ao próprio tribunal preservá-la preventivamente.


Nos Estados Unidos, essa compreensão foi reafirmada de modo pedagógico. Em 2023, a Suprema Corte norte-americana aprovou formalmente um código de ética após sucessivas reportagens revelarem relações inadequadas entre magistrados e grandes interesses privados. O episódio mais emblemático envolveu o justice Clarence Thomas que aceitou, por anos, viagens e benefícios custeados por um bilionário politicamente ativo, sem transparência adequada. Ainda que não se tenha identificado ilícito penal, o dano institucional foi inequívoco. A Corte percebeu que sua legitimidade não poderia continuar dependente da virtude individual de seus membros, mas exigia regras comuns que protegessem a instituição contra suspeitas recorrentes.


Esse paralelo é especialmente relevante para o Brasil. A Suprema Corte americana julga poucos casos por ano, cuidadosamente selecionados, e decide majoritariamente questões estruturais de natureza constitucional. O Supremo Tribunal Federal brasileiro, ao contrário, exerce uma jurisdição amplíssima, cotidiana e com impactos diretos e imediatos sobre grandes empresas, setores econômicos inteiros, contratos bilionários, políticas regulatórias e disputas tributárias sensíveis. Em um tribunal que decide pouco e decide alto, desvios de conduta já produzem crises institucionais. Em um tribunal que decide muito, decide sempre e decide sobre quase tudo, o risco é exponencial.


É nesse contexto que a ausência de parâmetros éticos claros se torna problemática. A normalização de práticas como voos em jatos privados custeados por personagens interessados em decisões do STF, a participação de ministros em eventos privados financiados por grandes agentes econômicos ou a atuação profissional de cônjuges em causas submetidas à própria Corte não é apenas uma questão de conveniência. É um problema institucional. Mesmo quando não há ilegalidade, há corrosão da confiança.


Os códigos alemão e americano são claros nesse ponto. Ambos estabelecem deveres rigorosos de afastamento, impedimento ou recusa sempre que a atuação de familiares próximos possa suscitar dúvida razoável sobre a imparcialidade do julgador. Não se trata de punir vínculos pessoais, mas de proteger a Corte contra a aparência de favorecimento. A ética judicial moderna não se limita à honestidade subjetiva; exige prudência objetiva.


Essa preocupação foi expressa com precisão clássica pelo ministro aposentado Celso de Mello: “Não basta ser imparcial. É preciso ser imparcial e também parecer imparcial. A Justiça não se sustenta no prestígio pessoal de seus julgadores, mas na confiança pública que inspira.” Trata-se de uma verdade elementar da filosofia política: autoridade sem reconhecimento social é poder instável, sempre à beira da contestação.
Cada episódio controverso transforma-se em crise, cada crise aprofunda o desgaste, e a instituição passa a reagir de forma defensiva, quando poderia agir preventivamente.


A proposta de um código de ética autoimposto pelo Supremo Tribunal Federal aponta na direção correta. Regras claras sobre recebimento de benefícios, viagens, participação em eventos privados, atuação de familiares e conduta pública não reduziriam a independência da Corte. Ao contrário, a protegeriam. Códigos não servem para constranger juízes honestos; servem para blindar instituições contra suspeitas desnecessárias.
O verdadeiro risco para o STF não está em aceitar limites éticos claros, mas em persistir na ilusão de que o poder máximo pode prescindir deles. Instituições duradouras compreendem que autoridade moral não é atributo espontâneo, mas construção permanente. Apoiar um código de ética é, portanto, um gesto em defesa do Supremo — como instituição republicana destinada a sobreviver às circunstâncias e aos seus ocupantes.




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