Proibição a estrangeiros em Harvard ameaça tirar acesso da China a um das últimos áreas ambicionadas
Cerca de 280 mil chineses frequentaram universidades americanas ano letivo 2023-2024
Se o governo do presidente americano, Donald Trump, conseguir de fato impedir a Universidade Harvard de matricular alunos estrangeiros, o grupo mais afetado será o de estudantes chineses, que representam a maior parcela de discentes internacionais da instituição.
As consequências provavelmente irão se estender muito além dos poucos aprovados que conseguiram ingressar na prestigiada universidade: a medida pode remodelar o relacionamento mais amplo entre os dois países, eliminando um dos poucos motivos pelos quais os chineses ainda admiram os EUA. Harvard processou o governo Trump pela medida nesta sexta-feira.
O fluxo de estudantes de Pequim para Washington tem sido, há muito tempo, um dos pilares mais confiáveis do relacionamento entre os dois países, apesar das crescentes tensões geopolíticas e das ambições de superpotência da China.
Cerca de 1,3 mil estudantes chineses estão atualmente matriculados em Harvard, segundo dados oficiais, e 280 mil frequentaram universidades americanas ano letivo 2023-2024. Mesmo com outros símbolos americanos — como Hollywood e os iPhones — perdendo o prestígio entre muitos chineses, as universidades americanas continuaram sendo fonte de aspiração, até mesmo de veneração.
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Universidades de elite desempenharam um papel particularmente importante nessa admiração. Nos últimos anos, até mesmo os intercâmbios estudantis começaram a sofrer com os laços frios entre os dois países, já que muitos se preocupam com a discriminação contra os chineses, a dificuldade em obter vistos e a criminalidade. Mas instituições como Harvard foram uma exceção: permaneceram tão atraentes quanto sempre para os estudantes, que estavam dispostos a ignorar outras preocupações em troca da promessa de uma educação de excelência. Com a medida de Trump, até mesmo esse farol está em questão.
— Todos vêm para cá com o ideal de mudar o mundo. Mas quando estou tentando entender o mundo, o mundo me exclui — disse uma estudante de pós-graduação em Harvard, que pediu anonimato por medo de colocar seu visto em risco. Ela disse que agora quer voltar para a China após a formatura.
Em um sinal de quão tensa a relação entre as duas superpotências se tornou, a reação de muitos chineses nas redes sociais — onde a notícia sobre Harvard foi uma das principais hashtags na sexta-feira — foi mista. Houve preocupação e indignação. Mas, em alguns setores, também houve aceitação triste e até mesmo alegria.
Alguns internautas disseram que Trump estava acelerando a ascensão da China. Eles comemoraram que as universidades americanas perderiam tanto receita quanto talentos, alguns dos quais poderiam fluir para a China. Pelo menos uma universidade em Hong Kong já declarou estar disposta a oferecer admissão incondicional a qualquer aluno transferido de Harvard.
"É divertido vê-los destruir sua própria força", dizia um comentário na plataforma Weibo. Um outro usuário escreveu: "Recrutar estudantes internacionais é a principal forma de atrair os melhores talentos! Depois que essa via for cortada, Harvard continuará sendo a mesma?".
Ren Yi, um blogueiro renomado que usa o pseudônimo de Chairman Rabbit e se formou em Harvard, escreveu que o governo americano estava "castrando" sua própria universidade de ponta.
"Esta é uma grande mudança nunca vista em um século", escreveu o blogueiro, citando o líder chinês, Xi Jinping, que usou a frase para descrever sua confiança na ascensão da China. (A própria filha de Xi também se formou em Harvard.)
Questionada sobre a decisão na sexta-feira, uma porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China disse que a medida "só prejudicaria a imagem e a reputação internacional dos EUA".
— A China tem se oposto consistentemente à politização da cooperação educacional — disse a porta-voz.
Crise aberta
Mesmo antes da ação contra Harvard, estudantes chineses tinham muitos motivos para se preocupar em ir aos EUA. Parlamentares estaduais e federais americanos propuseram restringir a capacidade de cidadãos chineses de estudar no país, alegando preocupações com a segurança nacional. Estudantes relataram ter sido recusados na fronteira, apesar de terem vistos válidos, ou tiveram vistos revogados abruptamente.
O Ministério da Educação da China emitiu no mês passado um alerta formal aos estudantes chineses para que considerassem os riscos de estudar nos EUA— seu primeiro alerta para estudantes que vão para o exterior desde 2021.
Os cortes no financiamento de pesquisas do governo Trump também pesaram sobre muitos acadêmicos chineses, alguns dos quais afirmam estar preocupados com a capacidade financeira para realizar seus trabalhos. A estudante de Harvard que afirmou que agora planeja retornar à China disse que teve uma oferta para uma posição de pesquisadora cancelada devido ao congelamento do financiamento federal.
Na próspera indústria chinesa de consultoria de estudos no exterior, muitos incentivaram seus clientes a se candidatarem a outras universidades, inclusive fora dos EUA, como precaução. O consultor de admissões Xiaofeng Wan, que aconselha estudantes estrangeiros sobre como ingressar nas principais universidades americanas, disse à AFP que passou a noite inteira ao telefone com clientes em pânico.
— Recebi perguntas não apenas de famílias, mas também de orientadores universitários na China, incluindo diretores de escolas de ensino médio — disse Wan, falando por telefone de Massachusetts. — Todos ficaram chocados com a notícia. Não conseguiam acreditar que isso realmente tivesse acontecido.
Nas ruas de Pequim, na sexta-feira, estudantes disseram à agência francesa que temiam que suas ambições acadêmicas estivessem em jogo.
— Para ser sincera, estou um pouco em pânico — disse Jennifer, de 20 anos, que planejava cursar uma faculdade nos EUA neste ano. — Cortes orçamentários e restrições de matrícula afetam todas as universidades dos EUA, independentemente de onde você se candidatar. Meus colegas de classe e eu sentimos que não temos nenhuma solução particularmente boa para essa questão, além de sermos pessimistas.
Para alguns, o status excepcional de Harvard — sua riqueza, seu prestígio — deu esperança de que a universidade, e a sociedade americana em geral, superariam a turbulência.
Yu, uma aluna de mestrado de Harvard que pediu para ser identificada apenas pelo primeiro nome por medo de retaliação, disse que ficou encorajada com a forma como as pessoas em Harvard reagiram aos ataques do governo. Além da administração da universidade, seus colegas, chineses e de outras nacionalidades, uniram-se para compartilhar planos de viagens internacionais, caso alguém tivesse problemas, e para dissecar a linguagem das ordens executivas.
Ela esperava que a vida como estudante internacional se tornasse mais difícil com Trump, disse ela, e não mudou drasticamente sua visão dos EUA.
— Eu olho mais para os valores que o país defende e como as pessoas estão tentando defendê-los — disse Yu. — Será difícil, mas haverá luta, e temos alguma esperança.

