Tolerância: o desafio de conviver com o diferente
Entre muros e pontes, especialistas analisam como a polarização e o extremismo alimentam atos de intolerância, afetando temas como política, religião e relações sociais
“A tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos”. Assim é definido o termo pela Declaração de Princípios sobre Tolerância da UNESCO, adotada em 1995. Neste domingo, no Dia Internacional da Tolerância, a Folha de Pernambuco propõe uma reflexão: em tempos de divergências políticas, religiosas, culturais e de gênero, como é possível vencer a intolerância? Em meio a tantos muros simbólicos erguidos nas últimas décadas, compreender o outro talvez seja o primeiro passo para reconstruir pontes.
Conceito
Reconhecida como pilar fundamental para o pluralismo de ideias e, consequentemente, para a manutenção do Estado Democrático de Direito, a tolerância dificilmente entra em consonância com dogmatismos ou ideias radicais que possam pôr em xeque a liberdade do outro.
Para o pesquisador titular da Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ), Joanildo Burity, o cerne do conceito de tolerância deve estar mais atrelado ao sentido de garantir o direito do próximo do que uma simples ideia de tolerância mútua. Ele vê como necessária a compreensão de que existem as mais variadas ideias e concepções que, por mais que sejam divergentes, podem se confrontar, desde que o regime democrático garanta que essas existências sejam capazes de se posicionar, organizar e mobilizar.
“A ideia da tolerância deve se colocar muito mais no sentido da garantia do direito do outro, do direito de existir daquele quem você diverge profundamente. Em outras palavras, é mais uma questão de concepção de direitos humanos do que propriamente ficar conclamando as pessoas a se tolerarem mutuamente como se as suas divergências e as suas diferenças fossem uma coisa superficial”, refletiu.
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Política
Contudo, o contexto atual apresenta um cenário marcado pela polarização, que a reboque vem permeado de rompimentos, perseguições e discriminações. O cientista político Augusto Teixeira enxerga que surgiu um processo de emergência de um movimento político, principalmente ligado aos lados mais extremistas, que elevou as disputas em que cada lado está em um ponto oposto.
Para o analista político, esse movimento vem se apropriando de questões de posição política e ideológica, influenciando os relacionamentos interpessoais, inclusive no que compete à família. A marca dessa estratégia passa pela negação do que é contrário.
“A polarização virou uma commodity política, um instrumento de mobilização e mecanismo de conseguir grupos votantes, identificados com determinada agenda. Isso se dá através de uma construção de identidade política que se estrutura não só pela oposição, mas pela negação do outro”, disse.
Teixeira também chamou atenção para o papel que as redes sociais desempenham dentro desse processo. O cientista argumenta que esses espaços ampliam a voz da população, mas que muitas vezes ocorrem sem muita reflexão ou educação política, sendo terreno fértil para opiniões mais extremadas, alimentadas pela lógica dos algoritmos e engajamento.
“O ambiente das redes sociais não é de uma ação comunicativa, em que você se permite estar aberto ao diálogo para ser convencido. Ele é de cancelamento, de rivalidade, de tribalismo e de postos políticos que vão, em sua essência, trabalhar com a anulação de outras perspectivas”, argumentou.
Para pensar nessa situação, o Estado pode ter papel fundamental na regulação desses espaços.“É preciso promover primeiro o exemplo, demonstrar a possibilidade de operar através das instituições, buscando o diálogo, consensos e não a mera ação de obstrução e interrupção dos trabalhos”, disse.
Religião
Conforme dados do canal de denúncias do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), no Brasil, a intolerância religiosa cresceu mais de 80% entre o período de 2023 e 2024. Segundo o estudo, as religiões de matriz africana são as que mais sofrem violações.
Para a professora de direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Ciani Neves, é mais plausível debater a perspectiva de racismo religioso quando observado o que acontece com os povos e comunidades tradicionais de terreiro.
Ciani Neves, professora de direito da UFPE - Foto: Felipe Ribeiro/Folha de Pernambuco “Os povos e comunidades tradicionais de terreiro estão sendo agredidos e violentados na sua forma de existir. A gente não fala ‘ser’ e ‘fazer’ separados porque está tudo integrado. Eles estão impedidos de continuar a sua forma de existir porque tudo que eles praticam é identificado como prática demoníaca”, explicou.
Formação
Partindo do ponto que a intolerância é a incapacidade de compreender e respeitar o diferente, a psicóloga clínica Manuella Dutra citou que há três aspectos neste funcionamento: cognitivo, emocional e comportamental.
A terapeuta alerta para a rigidez cognitiva, padrões de pensamentos automáticos que não escolhemos ter, mas que podem ser percebidos e modificados. Outro lado da intolerância pode revelar vazios emocionais, medos e inseguranças. Por fim, a necessidade de impor surge como um mecanismo de defesa para esconder as fragilidades.
A profissional reitera que a intolerância sempre será uma roupagem da dor e que é necessário ter coragem para lidar com as questões internas. “Não existe uma receita de bolo para extinguir a intolerância do próprio funcionamento. Estar ciente e seguro da própria identidade é uma forma saudável de conviver, também, com a identidade do outro, em suas semelhanças e diferenças”, disse.
Educação
Pensando no processo de formação dos indivíduos, a professora da rede municipal do Recife, Luciana Fernandez, relata que desenvolver habilidades de tolerância com as crianças no âmbito educacional é de extrema importância em prol de uma sociedade inclusiva. O ambiente familiar também tem papel fundamental nessa formação, visto que as crianças aprendem melhor a partir do que vivenciam.
Professora da rede municipal do Recife, Luciana Fernandez - Foto: Arthur Botelho/Folha de Pernambuco“Exemplos de atitudes de empatia podem ser demonstradas no dia a dia ao ceder a vez numa fila de supermercado, ao ajudar alguém a atravessar a rua, e incentivar a brincadeira em espaços públicos adequados para ter interação com outras crianças (típicas e atípicas). Quanto mais contato com as diferenças, maior será o desenvolvimento da tolerância”.

