Defesa da democracia, indiretas ao voto de Fux e citações: entenda o voto de Cármen Lúcia
Com manifestação da ministra, Corte formou maioria para a condenação Bolsonaro e mais 7 réus
Ao longo do seu voto decisivo pela condenação dos envolvidos na trama golpista, a ministra Cármen Lúcia fez uma longa defesa da democracia, costurou indiretas ao voto do colega Luiz Fux — que fez uma fala de 12 horas no dia anterior —, e elencou uma série de citações durante seu pronunciamento.
A decana da Corte acompanhou os colegas Alexandre de Moraes e Flavio Dino e votou pela condenação dos oitos réus envolvidos no julgamento, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Durante seu voto, Cármen por algumas vezes cedeu a palavra aos colegas. Moraes chegou inclusive a exibir vídeos antigos em que o ex-presidente fez ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF) em eventos públicos, com o intuito de reforçar a tese de uma tentativa de golpe estado articulada pelos réus.
Ela foi quarta a se manifestar, depois da divergência aberta por Luiz Fux. A decana destacou que os fatos narrados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) não foram negados ao longo da ação penal e que o 8 de janeiro de 2023 “não foi um acontecimento banal”.
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— Não se tem imunidade absoluta contra o vírus do autoritarismo, que se insinua insidioso, destilando o seu veneno a contaminar a liberdade e os direitos humanos — afirmou.
O julgamento segue agora em 3 a 1 pela condenação. Além de Bolsonaro, são acusados Braga Netto, Augusto Heleno, Anderson Torres, Paulo Sérgio Nogueira, Almir Garnier, Alexandre Ramagem e Mauro Cid.
Consolidação da maioria e a “prova cabal” da trama
Com o voto de Cármen Lúcia, o Supremo formou maioria para condenar Jair Bolsonaro e outros sete réus pelos cinco crimes da denúncia — organização criminosa, tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
A ministra afirmou que as acusações apresentadas pela Procuradoria-Geral da República não foram desmentidas ao longo do processo e que há “prova cabal” de que Bolsonaro liderou um grupo composto por integrantes do governo, das Forças Armadas e de órgãos de inteligência em um plano progressivo e sistemático de ataque às instituições democráticas.
— Os fatos que são descritos desde a denúncia não foram negados na sua essência. A Procuradoria fez prova cabal de que grupo liderado por Jair Messias Bolsonaro desenvolveu e implementou plano para prejudicar a alternância legítima de poder e minar o livre exercício dos Poderes, especialmente o Judiciário — disse.
Defesa da democracia e o sentido histórico do julgamento
Cármen abriu o voto enquadrando o caso como afirmação institucional da Constituição de 1988 e da própria ideia de Estado de Direito. Para ela, o processo não é apenas sobre oito réus: é um acerto de contas do país com uma sequência de atos que buscou romper o ciclo democrático. A ministra descreveu o julgamento como um marco — de proteção das regras do jogo, de responsabilização penal “para todos” e de rejeição a qualquer tentativa de banalizar o 8 de janeiro.
— O que há de inédito nesta ação penal é que nela pulsa o Brasil que me dói. A presente ação penal é quase o encontro do Brasil com o seu passado, com o seu presente e com o seu futuro — disse a ministra: — Não se tem imunidade absoluta contra o vírus do autoritarismo, que se insinua insidioso, destilando o seu veneno a contaminar a liberdade e os direitos humanos.
— A democracia brasileira não se abalou. Os prédios foram reconstruídos, a hora é de julgamento. O Estado Democrático brasileiro se aperfeiçoa, porque o Brasil é país, e somente com a democracia o país vale a pena.
Ao afirmar que os fatos essenciais “não foram negados”, Carmen quis demonstrar que houve um encadeamento de ações a ser analisado sob a ótica penal. E ao chamar o caso de “encontro com passado, presente e futuro”, ela deu peso histórico à decisão — reforçando que o STF não tratará o 8 de janeiro como desordem episódica, mas como tentativa de ruptura institucional.
Indiretas a Fux e o contraste de estilos
Sem citar nominalmente o colega, Carmen Lúcia fez questão de marcar distância em relação ao voto de Luiz Fux, que tomou toda a sessão da véspera e superou 12 horas de leitura. Com humor e firmeza, disse que seu voto não seria lido na íntegra.
—Escrevi um voto com 396 páginas, mas eu não vou ler, vou ler resumo, não se preocupe— disse a decana.
A frase, proferida ao conceder um aparte ao ministro Flávio Dino, foi interpretada no plenário como uma ironia ao chamado “voto-maratonista” de Fux. Dino havia brincado com a ideia de “banco de horas”, lembrando que fez uma manifestação curta para deixar espaço aos colegas. Carmen aproveitou a deixa para reforçar que, embora tivesse preparado um voto extenso, optaria por uma leitura objetiva.
A expectativa no STF era justamente essa — que a ministra oferecesse um contraponto claro, sólido e lapidar à divergência aberta. O contraste de estilos, nesse caso, é também contraste de conteúdo.
Citações da ministra
Ao longo de sua manifestação, Carmen Lúcia buscou apoio em vozes externas ao Supremo para reforçar a gravidade do julgamento. Citou desde a literatura europeia do século XIX até discursos de ex-presidentes do STF, além de recorrer a metáforas de forte impacto simbólico.
Em uma das passagens citou Victor Hugo, que escreveu História de um crime após o golpe de Napoleão III.
— O mal feito para o bem continua sendo mal, principalmente quando ele tem sucesso, porque então ele se torna exemplo e vai se repetir—
Carmen também evocou a fala da ex-ministra Rosa Weber, feita na abertura do ano judiciário de 2023, três semanas após os ataques:
— As instalações físicas de tribunal podem até ser destruídas, mas a instituição Poder Judiciário permanece incólume—
Defesa da Constituição e do processo eleitoral
Carmen Lúcia reafirmou no voto a defesa da integridade das eleições e da confiabilidade das urnas eletrônicas. Ao longo do julgamento, já havia interrompido a defesa de Alexandre Ramagem para corrigir a associação indevida entre “voto auditável” e “voto impresso”.
— Vossa Senhoria sabe a distinção entre processo eleitoral auditável e voto impresso. Repetiu como se fosse sinônimo, e não é, porque o processo eleitoral é amplamente auditável no Brasil. Passamos por auditoria— disse.
A intervenção se somou a outras manifestações em que a ministra buscou desarmar teses da defesa que relativizavam a gravidade da atuação de Bolsonaro e aliados contra o sistema eleitoral. Em sessão anterior, questionou o advogado de Paulo Sérgio Nogueira sobre a afirmação de que o ex-ministro teria atuado para “demover” o então presidente.
O 8 de janeiro
Carmen Lúcia rechaçou a tentativa de minimizar os ataques às sedes dos Três Poderes. Em contraponto direto à leitura de Luiz Fux — que classificou falas e condutas do ex-presidente e de aliados como “bravatas” ou “choro de perdedor” — a ministra sublinhou que os atos de 2023 resultaram de uma preparação organizada e não podem ser tratados como episódios ocasionais.
Para Carmen, a data simboliza a consumação de um encadeamento de práticas que vinham de antes da eleição, com discursos, articulações e instigações que tiveram como objetivo romper o ciclo democrático inaugurado pela Constituição de 1988.
Os apartes e o tom do debate no plenário
Logo no início, Carmen abriu espaço para um aparte do ministro Flávio Dino, que brincou com a ideia de “banco de horas” — uma referência bem-humorada à sessão anterior, ocupada pelo voto-maratonista de Luiz Fux.
O ministro Alexandre de Moraes também fez aparte e refutou a ideia de “turbas desordenadas” e descreveu a articulação entre núcleos e órgãos do Estado capturados por indivíduos — sem criminalizar as instituições.
— Não foi domingo no parque, não foi passeio na Disney; foi uma tentativa de golpe de Estado— disse Moraes
Moraes detalhou trechos da prova — reuniões, “kids pretos”, o uso de estruturas estatais por pessoas específicas, a documentação produzida pelos próprios envolvidos (decretos, minutas, cadernos, pastas digitais como “Memórias importantes”), e lembrou que a grave ameaça e a violência ficaram registradas em imagens e laudos.
Teses rejeitadas pela ministra:
Tentativa de golpe de Estado
A acusação de tentativa de golpe de Estado é o ponto central político do julgamento. O tipo penal se aplica a quem busca assumir ou manter-se ilegalmente no poder por meio da violência, impedindo a posse de um eleito ou subvertendo a ordem constitucional. É nessa acusação que se concentra a responsabilidade de Jair Bolsonaro: se a maioria entender que houve tentativa de golpe, o ex-presidente deixa de ser tratado como alguém que apenas discursou contra as urnas e passa a ser reconhecido como peça central de um plano para evitar a posse de Luiz Inácio Lula da Silva. A definição desse ponto tem reflexos diretos na pena e no sentido histórico do julgamento.
Ao avançar no voto, a ministra reforçou que as práticas denunciadas não podem ser vistas como manifestações isoladas, mas como um ataque direto ao Estado de Direito.
— Não poucas vezes, aliás, núcleos cínicos, tentaram surrupiar os direitos fundamentais para fazer valer projetos antidemocráticos — disse.
Para Cármen, foi justamente diante desse risco que legislações no Brasil e no mundo passaram a prever, em seus sistemas constitucionais e penais, o crime de golpe de Estado. O objetivo, segundo ela, é impedir que se normalizem condutas que busquem corroer a democracia sob o disfarce de exercício de direitos políticos.
Foro privilegiado
Um dos debates centrais antes do mérito foi sobre a competência do Supremo para julgar o caso. A defesa de diversos réus, como Jair Bolsonaro e os ex-ministros envolvidos, sustentou que, por já não ocuparem cargos à época do julgamento, o processo deveria tramitar na primeira instância. A definição desse ponto é crucial porque, se o STF fosse considerado incompetente, haveria risco de anulação do processo e de envio dos autos à Justiça de primeira instância, atrasando ou até inviabilizando a responsabilização penal dos acusados. Além disso, a posição da Corte sobre competência já foi usada como argumento em mais de 1,4 mil ações ligadas ao 8 de janeiro, o que torna essa decisão fundamental para a coerência institucional.
Cármen reafirmou que sempre votou pelo entendimento de que o Supremo deve julgar casos como este, desde Mensalão. Disse que seria “casuísmo gravíssimo” mudar agora. Isso desmonta a linha de Fux de tentar deslocar os réus para a primeira instância. A expectativa era que a ministra fosse manter a linha da maioria já consolidada no STF, segundo a qual casos relacionados ao 8 de janeiro devem permanecer na Corte mesmo em relação a ex-autoridades, por estarem diretamente vinculados ao exercício de suas funções. Em 2023, ao receber a denúncia, a própria Cármen acompanhou o entendimento de que a gravidade dos fatos e o envolvimento de altas autoridades justificavam o julgamento pelo Supremo. Esse posicionamento reforça a legitimidade do processo e evita que decisões anteriores sejam desconstituídas.
Acesso às provas e o “tsunami de dados”
Um dos principais argumentos das defesas foi o de que houve cerceamento, já que receberam uma quantidade gigantesca de provas, estimada em 70 terabytes, sem tempo hábil para examinar todo o material. Essa alegação, apelidada de “tsunami de dados”, buscou sustentar a nulidade do processo desde o início. Se acolhida, a tese poderia atrasar significativamente o julgamento e reabrir fases processuais já superadas, criando um efeito cascata sobre todas as ações penais ligadas ao 8 de janeiro.
Cármen rejeitou a alegação de cerceamento de defesa. Reforçou que houve acesso amplo e que só seria cabível anular se houvesse prejuízo comprovado — e não houve.
A ministra seguiu a posição adotada por Moraes e Dino, que rejeitaram a preliminar. Em ocasiões anteriores, a Primeira Turma já reconheceu que as defesas tiveram acesso amplo ao material durante meses e que não apresentaram elementos concretos que demonstrassem prejuízo. A tendência é que Cármen reafirme a regularidade do processo, argumentando que alegações genéricas não bastam para desconstituir um caso dessa gravidade.
Colaboração de Cid
A defesa também questionava a validade da delação de Mauro Cid, alegando falta de voluntariedade. Carmen rejeitou a preliminar e reafirmou que o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro manifestou de forma inequívoca sua intenção de colaborar.
— O colaborador atuou livremente, espontaneamente, porque quis, porque queria, e por isso não há nada que possa infirmar a colaboração premiada” — afirmou.

