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Direito e Saúde

Filhos em série: os perigos da reprodução assistida sem controle

Especialistas analisam o impacto social e genético que a reprodução em massa por um único indivíduo pode trazerEspecialistas analisam o impacto social e genético que a reprodução em massa por um único indivíduo pode trazer - Freepik

O desejo de ter filhos é legítimo, mas a reprodução assistida, quando feita sem limites éticos, médicos e jurídicos, pode gerar uma verdadeira crise de saúde pública, com impactos emocionais, familiares e sociais de longo prazo.

Casos recentes trazem à tona esse debate urgente. O exemplo mais emblemático é o do holandês Jonathan Jacob Meijer, que já teria gerado mais de 550 filhos, descumprindo limites impostos por clínicas. Outro caso, mais próximo da realidade brasileira, envolve um doador que transmitiu uma mutação no gene TP53, associada ao câncer, para pelo menos 23 crianças, após doar sêmen repetidas vezes em clinicas de reprodução . Muitos dos receptores não foram informados do risco genético.

Agora, soma-se a esses exemplos o caso do bilionário russo Pavel Durov, fundador e CEO do Telegram. Aos 40 anos, Durov anunciou que deixará sua fortuna, estimada em mais de R$ 85 bilhões, para os seus mais de 100 filhos. Segundo ele próprio revelou à imprensa francesa, apenas seis foram concebidos naturalmente, enquanto a grande maioria nasceu por meio de doações de esperma realizadas por ele nos últimos 15 anos em 12 países.

Em seu testamento, Durov afirma que a herança só será liberada após 30 anos, pois deseja que os filhos aprendam a ser independentes. Mas a questão central é outra: que tipo de impacto social e genético a reprodução em massa por um único indivíduo pode trazer?

A frágil regulamentação brasileira
No Brasil, a Resolução CFM nº 2.320/2022 tenta estabelecer algum controle, limitando o uso de material genético de um mesmo doador a no máximo dois nascimentos de sexos diferentes  numa área de um milhão de habitantes. Mas, sem um banco de dados nacional de doadores e sem uma fiscalização efetiva, essas regras são frequentemente burladas.

O problema se agrava com o crescimento da inseminação caseira, feita sem controle médico, laboratorial ou jurídico, muitas vezes por meio de anúncios em redes sociais. Essa prática clandestina expõe os envolvidos a riscos de infecções, doenças genéticas não detectadas e graves conflitos de paternidade e responsabilidade jurídica.

Atualmente, tramita no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) um pedido de providências para tentar regulamentar o reconhecimento em cartório de crianças geradas por inseminação caseira, sem necessidade de processo judicial. A proposta pretende permitir o registro com base apenas em declarações de vontade dos envolvidos.

Especialistas alertam, porém, que essa tentativa de "regularizar o fato consumado" pode agravar os problemas: estimular a prática insegura e criar um cenário de filhos sem rastreabilidade genética, com riscos futuros de consanguinidade e problemas de identidade.

No centro de todo esse debate estão os direitos das crianças. As futuras gerações têm direito à identidade genética, ao conhecimento de sua origem biológica e à proteção contra práticas que coloquem sua saúde ou estrutura familiar em risco. A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) são claros: a prioridade absoluta é a proteção integral da criança.

O tema finalmente chegou ao Legislativo. O Anteprojeto do Novo Código Civil, entregue recentemente ao Senado, traz pela primeira vez regras específicas sobre reprodução assistida, incluindo:

- Obrigatoriedade de consentimento prévio e informado;
- Limitação legal do número de nascimentos por doador, considerando a população local;
- Direito dos filhos ao acesso às informações sobre a identidade do doador, caso necessário por razões médicas e a critério do juiz ;

- Criação de um registro nacional de doadores.

Essa inclusão no Código Civil é fundamental para garantir segurança jurídica, controle ético e proteção aos direitos das crianças.


A reprodução humana é um direito, mas não pode ser exercida de forma descontrolada, clandestina ou sem responsabilidade social. Regularizar a inseminação caseira sem enfrentar seus riscos é um retrocesso. O Brasil precisa avançar na regulamentação, proteger as futuras gerações e impedir que exemplos como os de Meijer, Durov e o doador brasileiro com mutação genética se tornem regra e não exceção.

O momento de agir é agora.

 

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