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Direito e Saúde

Três DNAs e uma nova vida: quando a ciência desafia a bioética

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Na busca por respostas às mais cruéis doenças genéticas, a medicina reprodutiva tem cruzado fronteiras que, até pouco tempo atrás, pertenciam à ficção científica. Um exemplo contundente disso é o nascimento de bebês com o DNA de três pessoas, resultado de uma técnica de fertilização in vitro que visa impedir a transmissão de doenças mitocondriais. A prática já resultou no nascimento de seis crianças saudáveis, conforme revelou reportagem da Folha de Pernambuco, com base em estudo da Universidade de Newcastle, no Reino Unido. Os resultados são impressionantes: entre 95% e 100% de redução das mutações responsáveis por doenças letais, sem prejuízo aparente à saúde das crianças. Mas se a ciência vibra com os feitos, a ética e o direito vacilam diante dos dilemas.

O procedimento é tecnicamente conhecido como “doação mitocondrial” ou mitochondrial replacement therapy (MRT). Ele se propõe a substituir o DNA mitocondrial defeituoso da mãe — responsável por doenças graves que afetam músculos, cérebro e coração — por mitocôndrias saudáveis de uma doadora. Isso se dá por meio de uma complexa técnica de fertilização in vitro: retira-se o núcleo do óvulo da mãe, que contém seu DNA nuclear, e o transfere para o óvulo de uma mulher saudável, que teve seu próprio núcleo removido. O óvulo reconstruído, com DNA nuclear da mãe e mitocondrial da doadora, é então fecundado com o espermatozoide do pai. O embrião resultante carrega, portanto, uma combinação genética de três pessoas: pai, mãe e doadora. Embora o DNA mitocondrial represente menos de 0,2% do material genético total, ele é fundamental para o funcionamento celular e, portanto, para a vida.

Essa não é a primeira vez que a reprodução assistida desafia nossas concepções tradicionais sobre a origem da vida humana. A primeira fertilização in vitro ocorreu em 1978, na Inglaterra, com o nascimento de Louise Brown, conhecida como o primeiro “bebê de proveta”. Na época, o mundo se dividiu entre a celebração do avanço científico e o temor do que viria pela frente. Desde então, técnicas como a injeção intracitoplasmática de espermatozoides (ICSI), o congelamento de óvulos e embriões, a gestação por substituição (popularmente conhecida como barriga de aluguel) e o diagnóstico genético pré-implantacional (PGD) ampliaram o leque de possibilidades para pessoas com infertilidade, casais homoafetivos e portadores de doenças hereditárias.

Mais recentemente, surgiram debates em torno da edição genética de embriões, principalmente após o controverso caso do cientista chinês He Jiankui, que anunciou, em 2018, o nascimento de gêmeas geneticamente modificadas para serem resistentes ao HIV. O episódio provocou indignação global e resultou em sua condenação na China, além de uma moratória internacional em torno da edição do genoma humano germinativo.

Em comparação, a MRT é vista com mais tolerância, por não envolver modificação direta do DNA nuclear — onde se concentram os traços que definem aparência, inteligência, temperamento. No entanto, o impacto social e bioético permanece denso. O Reino Unido, país que lidera essa experiência, legalizou o procedimento em 2015, por meio de alterações na legislação de fertilização humana, com forte respaldo da Human Fertilisation and Embryology Authority (HFEA). Por lá, cada caso é avaliado individualmente, e os critérios incluem diagnóstico confirmado de doença mitocondrial materna e risco de transmissão superior a 25%. Além do Reino Unido, experiências ocorreram na Grécia, Ucrânia, México e Estados Unidos, mas com diferentes níveis de supervisão e transparência.

O Brasil, por sua vez, ainda não regulamenta a técnica. A Resolução nº 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina, que disciplina a reprodução assistida, não autoriza a substituição de mitocôndrias. Isso significa que, por ora, as famílias brasileiras que desejam utilizar a MRT precisam buscar clínicas no exterior, geralmente com alto custo financeiro. Tal ausência de regulação expõe o país à judicialização futura da técnica, especialmente diante do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e do direito à saúde e à constituição familiar.

Mas o que parece um milagre biotecnológico — gerar filhos sem risco de doenças genéticas devastadoras — suscita inquietações profundas. A primeira delas diz respeito à identidade genética: a criança nascida por meio da técnica possui três genitores. Ainda que a contribuição da doadora seja ínfima do ponto de vista quantitativo, ela é significativa do ponto de vista simbólico e jurídico. Como tratar essa doação? Seria ela comparável à doação de óvulos ou sêmen? A criança tem direito de saber quem é essa terceira pessoa? E essa doadora teria alguma responsabilidade parental, mesmo que remota?

Outra preocupação central é o precedente que esse procedimento pode estabelecer. Se hoje substituímos mitocôndrias, amanhã poderemos substituir ou editar trechos do DNA nuclear para eliminar outras doenças — ou até para selecionar características físicas, cognitivas, comportamentais. A linha entre terapia e eugenia torna-se tênue. A técnica, apesar de seu foco terapêutico, pode abrir caminho para os chamados “bebês sob medida”, alimentando fantasias de um controle absoluto sobre a genética humana.

Do ponto de vista bioético, o debate é intenso. A substituição mitocondrial desafia os quatro princípios clássicos da bioética: autonomia (os pais têm o direito de optar, mas a criança não consentiu), beneficência (evita doenças), não maleficência (os efeitos a longo prazo ainda não estão plenamente compreendidos) e justiça (quem poderá pagar por isso?). Há também o princípio da precaução, que recomenda prudência frente a intervenções cujos efeitos futuros ainda não são inteiramente previsíveis.

Há ainda um aspecto de justiça social a ser considerado. A técnica é sofisticada e cara, e corre o risco de ficar restrita a uma elite reprodutiva, aprofundando desigualdades no acesso à saúde. A seleção genética, quando limitada ao mercado e ao poder aquisitivo, não apenas discrimina como redefine o conceito de normalidade. O risco não é apenas médico, é moral: criar uma nova forma de exclusão biológica.
Por fim, a questão mais inquietante: temos o direito de editar a vida? A ciência nos dá ferramentas, mas a ética deve nos dar direção. A fertilização com DNA de três pessoas representa uma revolução na medicina reprodutiva, mas também um convite urgente a refletirmos, como sociedade, sobre os limites entre o possível e o desejável. A técnica pode ser uma esperança concreta para famílias devastadas por doenças hereditárias, mas não deve ser adotada sem um debate democrático, ético e jurídico sobre o mundo que queremos construir.
 

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